MARIANNE VAN HIRTUM – BÉLGICA – (1925-1988)

A belga Marianne Van Hirtum (1925-1988) foi poeta e artista plástica, tendo vivido entre Bruxelas e Paris. Assim como a ucraniana Maya Deren (1917-1961), ela também foi filha de um psiquiatra. De natureza inquieta, cultivou um leque bastante amplo de opções criativas no desenho, na pintura, na escultura, no guache e até mesmo na feitura de marionetes. Em toda essa vertente criativa ia buscar a fonte de inspiração em sua poesia. No desenho identificou-se em especial com a técnica do pontilhismo. Tendo se correspondido com André Breton em 1955, no ano seguinte passa a integrar o grupo surrealista, logo participando da Exposição Internacional do Surrealismo em 1959. Por muitos anos se manteve ligada ao grupo, colaborando com publicações como Sureman Liaison Bulletin e a revista Surrealism. Ao publicar, em 1976, La nuit mathématique, a seu respeito escreveu Jean-Louis Bédoin, afirmando que este livro é de uma densidade e profundidade que teria atraído, em outros momentos, a estima dos videntes. Seu nome é citado em uma carta de Maurice Bonnefoy ao curador Raymond Cordier, datada de agosto de 1960 e encaminhada a Breton logo em seguida, ressaltando decisão de incluir obras de Marianne na Exposição Surrealista Internacional – EROS – de Nova York. Seu nome também encontra declarada simpatia de Breton quando este compõe uma lista de destacadas obras surrealistas publicadas entre 1955 e 1962. Outros de seus livros são: Poèmes pour les petits pauvres (1953) e Les Insolites. Proses et poèmes (1956). [FM]

[É TÃO TARDE]

É tão tarde
Que em nossa negra Catedral
Uma pobre voz solitária
Se põe a gritar um lamento.
É tão tarde
Que as pedras dos caminhos se assustam,
E eu também me assusto e tremo.
Como aquela que ali se ajoelha
Nas aleias da Igreja
Qual uma pobre ovelha
Olhando para os poços de sua alma.
Mas é a Ti, Senhor,
Que ela enxerga.

POEMA CLANDESTINO

Quando soarem todas as badaladas
Da meia noite, não do sino,
Mas do coração,
Eu fugirei para procurar
Uma nova língua,
E para quebrar
Uma outra vez
As portas que não escondem mais nada.
Nas chuvas que não têm gotas,
Lágrimas ou água,
E não caem do céu ou da terra
Ou mesmo da memória.
Verdes juncos escorridos
Em meu bolso escondidos.
E as quatro lágrimas descosturadas
– que ainda me restam –
Dou-as de jantar aos meus pássaros

ARLEQUINS

Eu estava prestes a zarpar
Para o país que dizem
Pelos anjos criado.
Mas não é por uma estrela
Que se abandona o lar.
E nem por um batalhão de sonhos.
Ancorei meu barco à beira do rio,
Nele me lançando em brancos lençóis.
E olho para estrelas
Que passam
uma a uma
sorrindo em suas roupagens de
Arlequins.

[JAMAIS SEREI BEM COMPORTADA]

Jamais serei bem comportada
Eu corro sobre as flores
Ando descalça sobre ela,
Pouco me importando se os seus espinhos
Perfuram minhas faces,
Eu quero reencontrar poesia,
Poesia, meu amor.
Eu traço cruzes no céu,
Para não me perder no caminho
Onde estás, poesia, minha criança, minha amiga.
Eu estendo sobre a terra um véu de neve,

Um véu de flores e um manto branco:
Para o seu leito, minha criança.
E velo por meu filho que partirá para a guerra,
A poesia é o meu filho que retorna do front
Junto com seu velho cavalo está no bolso traseiro
E sobre seu coração, meu nome.
Na crista do vento, dancei e
Encontrei-me sentada na folha do passado.
Eu tenho por amigos os pobres e os simples
Encontrados na floresta e no prado.
Poesia, meu cavalo velho venha até mim,
Aproxime-se que eu solto minha cabeça ao vento
Que eu solto a tua crina
Que eu sinto a tua espinha.
Dê-me teu feixe de espinhos,
Um belo pássaro, que eu o planto,
E esse será meu bosque de rosas selvagens.
Poesia, minha vida, meu destino,
Minha boa rainha, meu doce amigo.
Estrela, esta noite tu dormirás comigo.

[EU PROCURO MINHA CASA]

Eu procuro minha casa
Onde está a minha casa?
Ela não está na planície
Que cavalga o vento.
– Também não está no vento.
Ela não é o céu.
– Ela não é uma nuvem.
Então, onde está a minha casa?
Ela não é o meio dia
E também não é a Lua
Portanto… onde fica a minha casa?
Ela não é o fogo
Ela não é um sino
Ela não é um grito
E não é um pássaro
Então, onde está a minha casa?
Ela não tem dois olhos
Ela não tem duas mãos
Onde fica a minha casa?
Onde fica a minha casa?
Onde está a minha casa?
– Eu não tenho casa na terra.

POEMA

Você tem penas na sua cabeça.
Um ar de suprema arrogância,
acorde com este sinal de seu olho
que projeta o perfil aquilino do nariz.

Não é possível que eu me aproxime muito de você,
em virtude de um segredo mais interior jamais formulado.

E você tem dentes perfeitos!

Você se opõe ao que não pode vê-lo,
uma parede cega, fortificada à sua frente.

Eu lhe dei o mais ínfimo beijo
em resposta à sua mordida na extremidade da língua.

Há quanto tempo você me ama?
Em todos esses dias choveu tantos pensamentos sublimes
na campanha soberana.

*****

Poemas traduzidos por Leila Ferraz, exceto o último, traduzido por Floriano Martins. Obra consultada:  Poèmes pour les petits pauvres (Seghers, 1953) e La Nuit mathématique (Rougerie, 1978).
 
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SURREALISMO A PALAVRA MÁGICA DO SÉCULO XX
Dossiê a cargo de FLORIANO MARTINS
Cumplicidade editorial: revista Athena (Portugal) e Agulha Revista de Cultura (Brasil)

Índice geral

01 | 1896-1966 | França | ANDRÉ BRETON
02 | 1898-1978 | França | VALENTINE PENROSE
03 | 1903-1956 | Peru | CÉSAR MORO
04 | 1904-1987 | França | ALICE RAHON
05 | 1906-1999 | Reino Unido | EMMY BRIDGWATER
06 | 1910-1997 | Argentina | ENRIQUE MOLINA
07 | 1914-1987 | Grécia | MATSI CHATZILAZAROU
08 | 1914-1987 | Japão | KANSUKE YAMAMOTO
09 | 1917-1961 | Ucrânia | MAYA DEREN
10 | 1920 | Portugal | CRUZEIRO SEIXAS
11 | 1925-1988 | Bélgica | MARIANNE VAN HIRTUM
12 | 1927 | Chile | LUDWIG ZELLER
13 | 1929 | Portugal | ISABEL MEYRELLES
14 | 1933 | Brasil | ZUCA SARDAN
15 | 1934-2011 | Cuba | JORGE CAMACHO
16 | 1936 | República Checa | ARNOST BUDIK
17 | 1944 | Brasil | LEILA FERRAZ
18 | 1946 | Portugal | NICOLAU SAIÃO
19 | 1953 | Gales | JOHN WELSON
20 | 1961 | Chile | ENRIQUE DE SANTIAGO