Ao piano ela pôs o vestido vermelho, enquanto ele finge não ver. vê o jornal, as notícias, as mesmas. ela tenta sentir a nota musical, que teme tocar pela janela alguém os vê ausentes, iriam sair para uma longa janta, mas estão ali, sem se olhar. a luz acesa ainda, não desligaram. para deixar a casa, a noite gelada lá fora os espera, mas eles ficam imóveis, na casa. ela senta ao piano, mas a nota não ecoa. nada pode atrapalhar o silêncio que reina entre dois ausentes.
O pássaro quando o pássaro é o próprio voo as cores das asas são as ondas do mar as nuvens do céu os raios do sol a transparência do vento e o esquecimento da memória.
Rimbaud
Alma humana – com sua cápsula de orações, tempestade, com a sua desgraça à terrível higiene de raça – tudo que é monstruoso e belo rasteja a ti. Igrejas de mel. Ao tempo e ao sangue que corre em tuas veias – uma rosa gentil. Ao mar profundo e às minhas retinas – um barco livre perene. À dor que nasce da vida – um suspiro de borboleta de maio. À suprema e majestosa noite, escura e intensa, sábia e terrivelmente enigmática noite – um verso em chamas. Ao mais longínquo e impossível dos amores – a saudade ébria. Igrejas de ouro. O meu sangue, gota a gota, banha os passos de belas bailarinas francesas. A ti, irmão de linguagem, pobre espírito de valor duvidoso, de almas religiosamente submersas nos buracos dos mitos dilacerados – irmão de blake, distante em tempo, vida e memória, que sentiu a alma das folhas, do vento, da lua escura – que conquistou o mais podre charco europeu, dentro das pequenas mãos azuis, que foi vício em si, que violentou a obviedade das sensações, que quebrou o céu, enquanto se vestia de anjo infante da morte. Igrejas de sal. Para o céu azul e para o rubro alvorecer – oferendas mágicas e sujas a ti – nesses riscos e desenhos. Igrejas em lágrimas. Agora, então, eis tu através da janela de van gogh, inundando com a lama da discórdia e sujeira da bela perfeição. Miras, perfurando o vidro e os quadros, e pequenas janelas distante na parede são abertas – e lá estás, deitado, dormindo no quadro, acima de tua sagrada cama, envolto numa áurea transparente.
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T. S. Eliot
à margem do rio chuva rindo da infância encontro meu pai entre as fotos guardadas meu pai de olhos nas pedras meu pai esplendor chuva ao vento estátua que não quer quebrar no sonho dos deuses sopra margem meu pai diante das cores imperfeitas cores que não completam palavras chuva canta o azul pássaro nas areias e diz o quanto sinto a volta do pai que não volta dor de deitar de rindo erguer o lápis e escrever na pele chuva pai com as memórias desnudas pai das palavras do céu estrelar da luz lilás da aurora pai meu pai que me entende pai as palavras agora pai sobre nós pai a chuva de inverno chuva os filhos que terei pai o futuro sem essas janelas confusas chuva abraça as paredes pai abraço-te quebro-te pai ao subir e descer as escadas chuva dessa serena ausência pai.
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Clarices
Nas sombras, elenco o que as ruas imaginam. As garotas falam de política, os políticos em bordéis, ninguém os entende. O que falamos. Os livros falam com os cadernos, os pensamentos com os sentidos, a verdade de pólvora. Alarmes. Pronunciem que as armas serão pegas, as palavras queimadas, os quadros destroçados, as canções emudecidas. Quem estava nos tronos, curvou-se. Os pobres ficaram de pé. Quem limpava os chiqueiros, sorriu, cantou, pulou, foi feliz. Os livros são lavados. Os filhos dos assassinos atravessaram as grades, beijaram os pés, as mãos, as costas – dos pais. As velas iluminaram o escuro. Os anjos foram para o estômago, e a língua pronunciou três milhões de vezes o que o amor queria sentir. A verdade tem uma estrada. Flores para o jardim, flores sutilmente arrancadas. Há um poema em cada livro, em cada sensação. Nas sombras, o ar é segredo, é distância, é vírgula sem sentido, mas é alma inteira, mas é alma metade, porque não se sabe total, não se sabe ser o que se é, só se sabe voar, para bem distante do que se é. Falamos de livros, para não falar de fogo. Escrevemos, para não entender o ódio. Seca! Seca minha vista. Seca meu olho. Seca minha visão. Seca meu medo de ver. Seca minha cegueira. Seca minha sensação de não enxergar. Seca minha verdade, minhas razões, seca.
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Fellipe Lee é poeta, autor do livro Vozes Mudas, aos 18 anos, depois se dedicou aos estudos teatrais, sendo ator e diretor de algumas peças. Dirigiu peça Ansias, com texto de Sarah Kane, e Barco Livre, inspirado no poema Bateau Ivre, de Rimbaud. Atualmente, é mestrando em Teatro pela Universidade Estadual de Santa Catarina, no Brasil. Tem 33 anos.
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