QUE LIÇÕES DA LIÇÃO DE ROLAND BARTHES! – por Hilton Fortuna Daniel

Mais difícil que entender Roland Barthes é falar dele, quer dizer, falar da complexidade da sua vasta obra. Pelas suas posições filosóficas, convicções, controvérsias, complexidade textual e até contradições (pois ele próprio admitia que as tinha), Barthes é um autor com, muitas vezes, as ideias vincadas e inflexíveis. É uma tarefa que se torna cada vez mais difícil quando vamos conhecendo com maior profundidade o seu augusto repertório bibliográfico.

Tornar-se-á fácil, mesmo que não pareça, entendê-lo a partir da Semiologia, que é o núcleo duro da maior parte dos seus escritos.

Além da crítica literária, das suas contribuições circunscritas à ciência literária e à própria literatura como ato ou exercício comunicativo, Roland Barthes detém inquestionáveis créditos no surgimento e desenvolvimento da Semiologia como ciência dos signos linguísticos. Neste sentido, o autor francês empenhou-se no entendimento da significação, que acaba por ser o epicentro desta recensão. Ele é dos poucos autores que escreveram livros, mas deixaram obras, visto que a nossa geração herdou dele um manancial inesgotável daquilo que podemos considerar os fundamentos das ciências semiológica e literária. Entre os seus livros mais conhecidos podemos “ousar” em destacar: Mitologias, A Câmara Clara, O Prazer do Texto, O Grau Zero da Escrita, Imagem-Música-Texto, O Império dos Signos, Elementos de Semiologia, Sistema de Moda, o Rumor da Língua, A Aventura Semiológica, A Morte do Autor, Crítica e Verdade e Lição, que é, sem dúvida, um convite irrecusável ao conhecimento da Semiologia como ciência dos signos.

Mas seria uma heresia se quiséssemos penetrar na visão barthesiana, sem que antes percebéssemos o que são signos?

Os signos são, segundo a conceção barthesiana, uma ponte entre a linguagem e o código. Um signo é um sinal, isto é, uma unidade linguística que possui um significante e um significado.

Mas a questão dos signos é por si complexa, mas Ferdinand Saussure distinguiu, dentro do signo linguístico, o significado (como a representação mental de alguma coisa, imagem visual ou sonora) e o significante (a forma real, a forma física da coisa).

Visto que a relevância dos signos está ligada ao entendimento da ciência literária como matéria de eleição de Barthes, uma questão é levantada, à qual o autor tentará responder ao longo do livro:

O que é a literatura?

Esta é uma celebérrima pergunta que Jean-Paul Sartre (1905-1980) faz no seu ensaio sobre crítica literária. Ele fá-la a intuir uma abordagem que se cinge no ato de escrever, onde muitos dos pressupostos utilizados seriam aplicáveis para se avaliar em que condições eram produzidas as obras literárias. Mas é na Lição barthesiana que Sartre encontraria uma presumível resposta:

Entendo por literatura não um corpo ou uma série de obras, nem mesmo um sector do comércio ou do ensino, mas o grafar complexo dos traços de uma prática: a prática de escrever. Eu viso com ela essencialmente o texto, quer dizer, o tecido de significantes que constitui a obra, porque o texto é a própria nivelação da língua e é no interior da língua que a língua deve ser combatida, transviada: não pela mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo de palavras de que é palco. (Roland Barthes).

Em Lição – ressalta-se, como sinopse do pensamento barthesiano, a aula magna por si inaugurada, por indicação de Michel Foucault, seu amigo, à época. Tudo indica que Lição nos remete, talvez abertamente, ao título de Bordeiu (Leçon sur la Leçon- 1982), visto que Peirre Bordeiu, nesta sua obra cuja tradução livre para o Português seria Lição de Aula demonstra inequivocamente as suas conveniências na questão problemática de todo um preceito paradigmático com o qual se institui uma aula magna e perene.

De facto, R. Barthes propunha, nessa aula magna, uma nova dinâmica ao ensino que à época se inaugurava. Num discurso introspetivo, compenetrado e emocionado, o autor questiona-se a si sobre os porquês de ter sido aceite no nobre Collège de France. A Escola configura uma tradição cultural, académica e eclética que atravessa décadas, período durante o qual muito contributo deu à Europa. Uma instituição rica em gerar personagens que tenham contribuído para a afirmação académico-intelectual durante décadas para o mundo do saber científico. Ademais, Barthes cita alguns nomes na nota introdutória.

Se a aula parece assumir um relato sobejamente didático, desenvolve-se tacitamente um pensamento barthesiano fascinado pela Semiologia, admite-o o próprio autor. Destaca-se por uma concretização do desejo de inscrever o seu trabalho no âmbito da ciência literária, lexicológica e sociológica. Na nota introdutória, o autor assume a verdade de ter associado, desde muito cedo, a sua investigação ao nascimento e andamento da disciplina semiológica.

A despeito de Lição ser uma obra antianátema e antiostracismo literário, por o pensamento barthesiano combater o modelo paradigmático da língua na conceção da própria literatura, é trivial que da análise barthesiana às forças da literatura, passando pela linguagem e pela Semiologia, nascem fatores que conferem à obra um elevado grau de complexidade e ao mesmo tempo um manancial de onde muito podemos aproveitar elementos semióticos com base nos pragmatismos de diversas áreas da vida num espaço social. Sendo assim, Barthes é um autor que se conseguiu inscrever no contexto de estudos semiológicos na Europa, os seus ensinamentos perpetuar-se-ão.

E quando falamos na Semiologia barthesiana, é um dever mencionar a classificação do autor segundo a qual pode a Semiologia ser ativa e negativa, ou seja, para o melhor e para o pior.

Ao longo desta reflexão, comprovar-se-á a existência de um conjunto de conceitos basilares subjacentes a todo o pensamento barthesiano, seja na conceção da ciência literária, seja na da literatura semiológica.

É importante reafirmar que o autor não deseja, com esta exposição, que a Semiologia venha substituir alguma disciplina, pelo contrário, desejaria que ela não viesse a ocupar nenhuma outra investigação, mas que ajudasse todas as disciplinas ou ciências. Esta Lição revela o desejo em concretizar um vínculo com todas as disciplinas cujo campo de ação abrange o sistema de signos e o fenómeno da significação.

O poder, a linguagem e a literatura

Percebe-se, desde já, a necessidade de o autor propor ou classificar três partes ou forças da literatura estruturantes no conteúdo desta obra.

Na primeira parte, Barthes demonstra uma preocupação com a qualidade do ensino e releva bastante a questão do poder: o poder penetrado ao discurso a libido dominandi (a vontade de poder, o desejo de dominar, o desejo para o governo. Libido dominandi é um pensamento agostiniano segundo o qual a natureza humana está dotada de características que atraem o homem para o governo ou para o poder), portanto a inocência “moderna” fala do poder como se ele fosse apenas um (dos que o têm e dos que não o têm).

Roland Barthes chama a atenção ao facto de o poder não ser exemplarmente de matéria política, também o é nas instituições e, fundamentalmente, nas de ensino. O poder está presente nos mecanismos da comunicação social, não só nos grupos, classes e Estados, mas na moda, nas opiniões correntes, nos espetáculos, no desporto e jogos, nas relações familiares e privadas e até nas forças libertadoras que o tentam contestar. É, portanto, a partir do discurso do poder que o autor rebate quem pensa que os intelectuais devem agitar em todas as ocasiões contra o Poder, mas demonstra que a guerra é contra os poderes, que não é fácil, pois este é plural dentro de um perímetro social, perpetua-se na história, embora perseguido e, por isso, debilitado, nunca definha, renasce.

Então, esta primeira parte termina com um discurso justificado e propositadamente transversal, segundo o qual o objeto em que o poder se inscreve é, desde sempre, a linguagem – ou, para ser preciso, a sua expressão obrigatória: a língua.

Na segunda parte, apresenta-nos o paradigma da linguagem onde se pode ler que a linguagem é uma legislação e a língua é o seu código. É, deveras, curiosa a ideia que Barthes nos apresenta sobre o real poder da linguagem: não nos apercebemos do poder que existe na língua, porque nos esquecemos que qualquer língua é uma classificação e que qualquer classificação é opressora.

É revelada, nesta parte, uma objeção aos processos paradigmáticos da linguagem nos quais Barthes se sente obrigado a se definir como sujeito antes de enunciar uma ação, sente-se sempre obrigado a escolher entre o masculino e o feminino, ao neutro, ao tu ou vós. E cita Jakobson como atestado da ditadura imposta pela linguagem da qual discordava com veemência. E parece mais peremptório Barthes, ao afirmar que assim, devido à própria estrutura, a língua implica uma relação de alienação fatal, pois nos são recusadas quaisquer indecisões afetiva e social, quer em Francês, quer, e já agora «no caso de quem vos escreve», em Português.

Como seria de esperar, habituados à essa transversalidade, Barthes termina esta segunda parte com uma tácita provocação:

“Mas a nós que não somos apóstolos da fé, nem super-homens, só nos resta, se é que posso dizer, fazer batota com a língua, trapacear a língua. Esta trapaça salutar, esta esquivança, este logro magnífico que permite conhecer a língua no exterior do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, é aquilo a que eu chamo literatura”. (R. Barthes).

Na terceira parte, transitando da linguagem, como poder, para a literatura, como saber omnisciente, por se ocupar de muitos saberes, o autor define literatura como o grafar complexo de traços de uma prática: a de escrever. E não simplesmente um corpo ou um conjunto de obras, tampouco um setor do comércio ou do ensino. O mais deslumbrante, em toda a obra de Barthes, é o seu caraterístico discernimento em transpor os cânones convencionados no conceito da literariedade e de linguagem, ou seja, ao afirmar que:

“As forças de liberdade que se encontram na literatura não dependem da pessoa civil, do comprometimento político do escritor que, no fim de contas, não é senão um – senhor – entre outros, nem depende do conteúdo doutrinal da sua obra, mas do trabalho de deslocação que ele exerce sobre a língua”.(R. Barthes).

Podemos aferir, inequivocamente, que Mia Couto, com seus atalhos linguísticos, e José Saramago, cuja peculiaridade literária e de linguagem transgressora e transviada são exemplos nos quais certamente Barthes enquadraria a sua transversalidade discursiva. O autor induz-nos uma reflexão segundo à qual, deste ponto de vista, Céline seria tão importante como Victor Hugo, Chateaubriand tão relevante como Zola.

Ainda no plano literário, e pelo que já se notou sobre a sua lucidez semiológica, de tantas forças que a arte literária possui no ato comunicativo, Barthes destaca três. Podiam estar em conceitos galicistas ou outros quaisquer, mas o autor faz questão de os vernaculizar na língua grega, como muitas vezes o faz:

  1. a) Mathesis

A literatura ocupa-se de muitos saberes. A linguagem inserida na arte literária contém todo o conhecimento, fala de todas as ciências. Ela não diz que sabe alguma coisa ou sabe tudo, mas sabe alguma coisa e sabe tudo. A escrita torna possível o conhecimento, porque as palavras permitem a existência das coisas como elas são. Do ponto de vista da linguagem, o que ela salienta não é o real e a fantasia, o verdadeiro e o belo, mas apenas diferentes lugares da palavra, pois a enunciação visa o próprio real da linguagem. Logo, as palavras já não são falsamente concebidas como instrumentos, são-nas como projeções luminosas, das explosões, das vibrações, das maquinarias, dos sabores, enfim, representam uma realidade distinta infinitamente. Mas neste domínio do saber, é imprescindível o sal das palavras como ingrediente para que haja sabor, portanto é necessário que as coisas tenham gosto daquilo que são, as palavras têm sabor.

  1. b) Mimesis

A segunda força da literatura é, naturalmente, a sua força de representação. A imitação e o representar a natureza constituem o fundamento de toda a arte desde a Antiguidade. A literatura preocupa-se em representar alguma coisa: o real. Mas como o real não é representável e os homens querem representar de todas as maneiras, por palavras, nasceria a literatura como ponto de demonstração. É o poder de representação. A literatura imita o real, a intenção de representar a realidade. E por a literatura ser realista, não desejar senão o real, tem uma função a que Barthes convenciona como utopias da linguagem, o tempo todo a tentar alcançar a coincidência com a realidade «às vezes» nunca alcançada. A literatura é categoricamente realista, por não desejar senão o real, mas é também obstinadamente irrealista, porque julga sensato o desejo do impossível.

  1. c) Semiosis

É a faculdade de jogar os signos em vez de os destruir, isto tem a ver com a produção de significados. A terceira força é adequadamente semiológica, porque incide sobre os sinais de linguagem, ou seja, sobre as palavras. São sinais para actuar, isto é, alterar o seu sentido, em vez de os destruir. Barthes diz que a semiologia viria a ser mesmo o trabalho que recolhesse as impurezas da língua. O que fosse recusado pela linguística, a corrupção imediata da linguagem.

O negativo e o ativo na ótica da Semiologia barthesiana

A Semiologia de que fala o autor é negativa e ativa. Podemos entendê-lo quando diz que alguém que tenha questionado por toda a vida para o melhor e para o pior não pode deixar de ser atraído pelas formas do vazio da própria linguagem, pois é o contrário desse vazio.

Bem, vamos compreender a Semiologia negativa e a Semiologia ativa na conceção barthesiana.

É Semiologia negativa por ser apofática. É o elemento discursivo por meio do qual tudo o que não tiver uma razão, uma lógica, não pode ser explicado nem entendido. E nesse apofatismo, surge uma vertente da teologia que visa definir Deus pela via negativa, refuta, contesta e até nega. A segunda consequência do seu apofatismo consta no facto de que a Semiologia esteja em constante ligação com a ciência, embora não seja entendida, nem tivesse desejado isto como disciplina.

Mas que tipo de ligação é que a Semiologia mantém com a ciência?

Ora, uma relação de suporte, de auxílio, através da qual são fornecidos mecanismos que possibilitem essa relação ancilar, sem a qual talvez fosse difícil a análise da narrativa na contribuição do estudo da história, por exemplo.

É Semiologia ativa por se desenvolver para além da morte, portanto é voltada para o signo, recebe-o, trata dele e imita-o como num espetáculo imaginário. Os textos do imaginário, as narrativas, as imagens, os retratos, as expressões, os idioletos, as paixões e as estruturas que exibem uma aparência de verosímil e uma incerteza de verdade fundamentam-se na teoria barthesiana.

Contudo, uma nova situação pode mudar a forma de fazer uso das forças da literatura. A Semiologia literária seria essa viagem que permitiria partir para um rumo incerto, mas que acabaria por chegar ao cais dos assuntos da Semiologia ativa de que fala Roland Barthes.

Para R. Barthes a linguagem é um fenómeno social que nos obriga a dar respostas e que a Semiologia literária será uma viagem que permite desembarcar numa paisagem livre por deserdação, sem anjos nem dragões para a defenderem. A encerrar o texto, o desejo barthesiano estava inclinado na renovação, em cada ano que lhe fosse permitido ensinar ali, como maneira de passar um discurso sem a necessidade de o impor: seria esta a problemática metódica e o aspecto fulcral.

A Lição de Barthes está revestida de certa benemerência, conclui-se, num quadro sobre a visão semiológica da linguagem a que sempre estivemos acostumados, porquanto traduz o resultado de estudos acurados nas mais diversas áreas, segundo o próprio, iniciados antes de ser aceite no Collège de France (Collège Royal). A Semiologia, hoje, pode culpar a Roland Barthes indubitavelmente pelo sucesso que se lhe observa, embora haja autores que desenvolveram estudos sistemáticos, antes deste, sobre os signos da linguagem e com as mesmas afinidades como Charles Sanders Peirce (no campo da Semiótica cujos métodos e resultados pressupunham algumas diferenças em certa medida aos da Semiologia barthesiana).

Deste modo, ao longo deste texto, foi-nos possível constatar o que se referiu nas primeiras linhas: comprova-se a existência de um conjunto de conceitos basilares subjacentes a todo o pensamento barthesiano no que tange à linguagem, à literatura e à própria Semiologia. Seja na conceção da ciência literária, seja na da literatura semiológica, há um poder que deve ser observado de forma mais branda e não tão alienada ou fatal como afirma Barthes. Esta leitura foi muito mais densa do que se pensou em princípio, ainda assim, foi frutífera. É inegável que Lição transpareça (não só um caráter didático, como também) um aspecto lúcido que nos permite perspetivar a sua atitude face ao pragmatismo do conhecimento, entendido como um processo contínuo de transformação vincado pela sua posição crítica face ao saber instituído, bem como uma crítica da linguagem como condição sine qua non à conceção da Semiologia literária.

Ficamos com uma lição aprendida da Lição barthesiana e que ao mesmo tempo é a ideia que encerra o livro, para quem não o tenha lido ainda: a ciência é grosseira, a vida é subtil, e a literatura interessa-nos na medida em que tende a corrigir essa distância, essa diferença. Por outro lado, o saber que a literatura mobiliza, nunca é nem completo nem tão pouco conclusivo; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que conhece alguma coisa acerca desse saber, que sabe muito sobre os homens”.

Aprendemos uma grande lição com a Lição. E, portanto, são esta obra e o referido autor tão grandiosos pela herança, que parecemos insignificantes em qualquer análise que sobre eles se faça.

Leituras

BARTHES, Roland, (1971). Da Obra ao Texto, in O Rumor da Língua, tradução de António Gonçalves, Edições 70, Colecção Signos, Lisboa, 1987.

BARTHES, Roland, (1973). O Prazer do Texto, tradução de Maria Margarida Barahona, Edições 70, Colecção Signos, Lisboa, 1997.

BORDIEU, Pierre, (1982). Lições da Aula, tradução de Egon de Oliveira Rangel, Editora Ática, São Paulo, 2001.

SARTRE, Jean-Paul, (1948). O Que é a Literatura?, tradução de Carlos Filipe Moisés, Editora Ática, São Paulo, 2004.

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Hilton Fortuna Daniel é formado em Didática do Ensino do Português, pela Universidade Agostinho Neto; mestre no Ensino do Português, pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Pesquisador e professor de Literatura e Português. Colaborador na Academia das Ciências de Lisboa. Escreve crítica literária, contos, crónicas, ensaios e outros. Tem, sozinho e em coautoria, diversos artigos e livros publicados em Angola, em Portugal e no Brasil. Às vezes, compõe e canta rap.