Afonso, César Alexandre (2014). Espada de Santa Maria, Lisboa, Chiado Editora
Espada de Santa Maria, da autoria de César Alexandre Afonso (Psicólogo na Polícia Judiciária), é um romance publicado pela Chiado Editora, que, a meu ver, deixa um legado indelével na literatura portuguesa, no que respeita aos romances históricos. Esta é a história de Joana, uma psiquiatra do Hospital de Santa Maria, que inesperadamente se envolve numa situação de vida que a obriga a descobrir a história da sua família, detentora dos desígnios dos Cavaleiros Templários, sendo ela a descendente de linhagem dos protetores da Espada de Santa Maria.
O título remete-nos logo para a importância da Espada que fora pertença da Ordem dos Cavaleiros de Santa Maria e, apesar de simples, causa impacto no leitor, pois dá a entender do que trata o romance e apresenta a carga histórica que contém.
O autor vai clarificando o percurso levado a cabo para proteger a Espada, ao longo dos séculos, e para isso serve-se da História como pano de fundo, assumindo uma nova roupagem, uma reinterpretação, tal como José Saramago referiu: “a História não pode ser reescrita infinitamente, até porque cada reescrita supostamente acrescenta algo que não se sabia ou que se sabia, mas que se está a interpretar de uma maneira distinta” (Reis, 1998:84).
Nesta interferência do passado com o presente, o autor harmoniza a ficção com a História de Portugal, num relato de inúmeros episódios, que servem para explanar a criação da Ordem dos Cavaleiros de Santa Maria, a existência e o desaparecimento da Espada de Santa Maria. Começa por situar o leitor na morte de D. Afonso, filho de D. João II, continuando numa caminhada cronológica até aos nossos dias, à medida que exalta o valor que a Ordem dos Cavaleiros de Santa Maria assume na História e concomitantemente no romance.
A escrita de César Alexandre Afonso evidencia a sua experiência profissional através do vocabulário da área da Psicologia, sempre que se refere ao Professor Manuel da Fonseca e a Joana, no contexto do Hospital de Santa Maria e noutras situações ao longo do romance. Tal como o autor, também Joana tem origens trasmontanas, elementos que estão presentes no texto na referência à casa do norte, onde ela aprendera a andar a cavalo, e quando, na vivenda do Restelo, Don Juan de Valverde oferece um «digestivo transmontano» a Dom Manuel de Bragança.
Belamente construído, Espada de Santa Maria é resultado de uma vasta pesquisa histórica e oferece-nos, enquanto romance histórico, uma minuciosa descrição da sociedade portuguesa do século XV, marcada pela magnificência da corte portuguesa, com a alusão a momentos fulcrais da vivência da época, como as caçadas, as viagens, as batalhas, a história das sucessões dos reis, a forma de vestir, os modos e as feiras medievais. Além disso, a existência de elementos da História, como personalidades e acontecimentos históricos, atribuem ao romance uma relevância incontestável no que à reescrita da História diz respeito. É nesta envolvência entre personagens históricas, agora ficcionadas, e personagens fictícias que toda a trama é construída de forma sublime.
No desenrolar da ação, o plano da História é articulado com o plano da ficção, conduzindo o leitor de forma soberba nesse caminho que visa a proteção do Segredo de Santa Maria. O relato histórico que o narrador expõe está semeado de comentários e de alusões a acontecimentos da História: a Batalha de Toro (1476), a Restauração da Independência de Portugal (1640), a Revolta Liberal (1820), a Implantação da República (1910) e a Guerra Colonial (1961). A forma como o discurso é representado é muito rica, com a descrição dos vários episódios históricos, tomando como exemplo o da Batalha de Toro, minuciosamente descrita, com recurso à adjetivação expressiva e às comparações, que transmitem vivacidade ao texto e transportam o leitor para o campo de batalha.
Verifica-se na escrita de César Alexandre Afonso, além da pesquisa histórica levada a cabo, a capacidade que o mesmo tem de guiar o leitor, revelada na preocupação em transportar o leitor para um tempo passado. Para isso, recorre a notas finais que explicam certas situações ou referem algo mais sobre as personalidades históricas.
Numa mistura temporal, a cerimónia da nomeação dos cavaleiros, o pacto de sangue entre o rei e os seus súbditos, as expressões latinas e o tratamento formal contrastam com a época do tempo presente, em que há referência à SIC Notícias, ao GPS, ao telemóvel e às portagens.
No que toca às categorias da narrativa, o romance apresenta duas ações principais: a que respeita aos séculos passados (histórica) e a que respeita à atualidade (ficcionada), concentradas em espaços físicos como Lisboa e Santarém.
A obra estrutura-se em 32 pequenos capítulos, alternados em várias fases temporais. O tempo histórico em que se desenrolam as sequências narrativas concerne aos anos que decorrem entre 1491 e 1960, alternados com o ano de 2010, cronologicamente situado nos meses de fevereiro e setembro. Essa estrutura do romance e o recurso a analepses servem o intento de um todo percetível, permitindo ao leitor fazer uma ponte entre o tempo presente da ação (2010) e o passado. Os capítulos são relativos ora a Joana com outras personagens e em vários espaços, como representante dos Cavaleiros da Ordem de Santa Maria, ora as personagens que representam o Priorado do Carmo. A partir do capítulo XXIV, a ação passa a ser encadeada e apenas no capítulo XXXI, quando se dá o Equinócio de Outono, na Feira Medieval na Batalha, em Setembro de 2010, é que há a junção das duas fações.
O período que comporta o século XV surge caracterizado através da atuação de personagens históricas, como as da família real, do Clero e da Nobreza, e de personagens fictícias, que conferem à ação um relevo fulcral na revisitação da História. Quanto à caracterização física das personagens, estas têm uma caracterização predominantemente direta, feita pelo narrador. Apenas Joana apresenta um retrato psicológico, permitindo-me assim falar de um tempo psicológico no romance, por estar relacionado com as emoções, a sua problemática existencial, ou seja, a forma como ela sente a passagem do tempo. Curioso é verificar como ela, sendo psiquiatra e estudiosa da mente, vive as suas emoções e os seus pensamentos.
A Carta do pai de Joana (capítulo IX), dirigida a esta, além de representar a junção das duas épocas, a passada e a presente, é o desvendar do passado genético da família e o ponto de partida para a alteração de Joana como personagem, pois dá-lhe a conhecer uma realidade que não conhecia. Ao lê-la, a psiquiatra toma conhecimento da vida de D. João II, o Príncipe Perfeito, da criação da Ordem dos Cavaleiros de Santa Maria, a sua caracterização e a ligação a ela, através do seu tetra-tetra avô, Dom Jorge, e do seu bisavô, Dr. João de Meneses.
Se, por um lado, César Alexandre Afonso desconstrói as várias épocas da História que são essenciais para a existência da Ordem dos Cavaleiros de Santa Maria, por outro, através da intervenção de Joana, constrói subtilmente o presente.
No final do romance, cumpriu-se o desígnio de gerações de Cavaleiros: proteger o Segredo de Santa Maria, possível através da criação de um código específico, a expressão «O tempo é de Coruja». É no presente ficcionado que o Segredo de Santa Maria é reunido: a Espada de Santa Maria, o Diário do Príncipe e a Coudelaria de D. João. O filho de Joana será o herdeiro do destino, que terá de fazer a sua própria viagem, cumprir a sua missão e ser ele próprio um Cavaleiro da Ordem.
Para finalizar esta minha apreciação de Espada de Santa Maria, considero que a obra é um exemplo do espelho da História refletida na ficção e por isso recomendo a sua leitura a quem goste de ler, mas particularmente a quem se interesse pela História de Portugal e por perceber os sacrifícios que nobres homens passaram. É, com efeito, um livro que trata a História de um povo na sua grandeza, permitindo um retornar à memória coletiva, e que questiona o que fomos, para avaliar o que seremos.
Espada de Santa Maria, da autoria de César Alexandre Afonso (Psicólogo na Polícia Judiciária), é um romance publicado pela Chiado Editora, que, a meu ver, deixa um legado indelével na literatura portuguesa, no que respeita aos romances históricos. Esta é a história de Joana, uma psiquiatra do Hospital de Santa Maria, que inesperadamente se envolve numa situação de vida que a obriga a descobrir a história da sua família, detentora dos desígnios dos Cavaleiros Templários, sendo ela a descendente de linhagem dos protetores da Espada de Santa Maria.
O título remete-nos logo para a importância da Espada que fora pertença da Ordem dos Cavaleiros de Santa Maria e, apesar de simples, causa impacto no leitor, pois dá a entender do que trata o romance e apresenta a carga histórica que contém.
O autor vai clarificando o percurso levado a cabo para proteger a Espada, ao longo dos séculos, e para isso serve-se da História como pano de fundo, assumindo uma nova roupagem, uma reinterpretação, tal como José Saramago referiu: “a História não pode ser reescrita infinitamente, até porque cada reescrita supostamente acrescenta algo que não se sabia ou que se sabia, mas que se está a interpretar de uma maneira distinta” (Reis, 1998:84).
Nesta interferência do passado com o presente, o autor harmoniza a ficção com a História de Portugal, num relato de inúmeros episódios, que servem para explanar a criação da Ordem dos Cavaleiros de Santa Maria, a existência e o desaparecimento da Espada de Santa Maria. Começa por situar o leitor na morte de D. Afonso, filho de D. João II, continuando numa caminhada cronológica até aos nossos dias, à medida que exalta o valor que a Ordem dos Cavaleiros de Santa Maria assume na História e concomitantemente no romance.
A escrita de César Alexandre Afonso evidencia a sua experiência profissional através do vocabulário da área da Psicologia, sempre que se refere ao Professor Manuel da Fonseca e a Joana, no contexto do Hospital de Santa Maria e noutras situações ao longo do romance. Tal como o autor, também Joana tem origens trasmontanas, elementos que estão presentes no texto na referência à casa do norte, onde ela aprendera a andar a cavalo, e quando, na vivenda do Restelo, Don Juan de Valverde oferece um «digestivo transmontano» a Dom Manuel de Bragança.
Belamente construído, Espada de Santa Maria é resultado de uma vasta pesquisa histórica e oferece-nos, enquanto romance histórico, uma minuciosa descrição da sociedade portuguesa do século XV, marcada pela magnificência da corte portuguesa, com a alusão a momentos fulcrais da vivência da época, como as caçadas, as viagens, as batalhas, a história das sucessões dos reis, a forma de vestir, os modos e as feiras medievais. Além disso, a existência de elementos da História, como personalidades e acontecimentos históricos, atribuem ao romance uma relevância incontestável no que à reescrita da História diz respeito. É nesta envolvência entre personagens históricas, agora ficcionadas, e personagens fictícias que toda a trama é construída de forma sublime.
No desenrolar da ação, o plano da História é articulado com o plano da ficção, conduzindo o leitor de forma soberba nesse caminho que visa a proteção do Segredo de Santa Maria. O relato histórico que o narrador expõe está semeado de comentários e de alusões a acontecimentos da História: a Batalha de Toro (1476), a Restauração da Independência de Portugal (1640), a Revolta Liberal (1820), a Implantação da República (1910) e a Guerra Colonial (1961). A forma como o discurso é representado é muito rica, com a descrição dos vários episódios históricos, tomando como exemplo o da Batalha de Toro, minuciosamente descrita, com recurso à adjetivação expressiva e às comparações, que transmitem vivacidade ao texto e transportam o leitor para o campo de batalha.
Verifica-se na escrita de César Alexandre Afonso, além da pesquisa histórica levada a cabo, a capacidade que o mesmo tem de guiar o leitor, revelada na preocupação em transportar o leitor para um tempo passado. Para isso, recorre a notas finais que explicam certas situações ou referem algo mais sobre as personalidades históricas.
Numa mistura temporal, a cerimónia da nomeação dos cavaleiros, o pacto de sangue entre o rei e os seus súbditos, as expressões latinas e o tratamento formal contrastam com a época do tempo presente, em que há referência à SIC Notícias, ao GPS, ao telemóvel e às portagens.
No que toca às categorias da narrativa, o romance apresenta duas ações principais: a que respeita aos séculos passados (histórica) e a que respeita à atualidade (ficcionada), concentradas em espaços físicos como Lisboa e Santarém.
A obra estrutura-se em 32 pequenos capítulos, alternados em várias fases temporais. O tempo histórico em que se desenrolam as sequências narrativas concerne aos anos que decorrem entre 1491 e 1960, alternados com o ano de 2010, cronologicamente situado nos meses de fevereiro e setembro. Essa estrutura do romance e o recurso a analepses servem o intento de um todo percetível, permitindo ao leitor fazer uma ponte entre o tempo presente da ação (2010) e o passado. Os capítulos são relativos ora a Joana com outras personagens e em vários espaços, como representante dos Cavaleiros da Ordem de Santa Maria, ora as personagens que representam o Priorado do Carmo. A partir do capítulo XXIV, a ação passa a ser encadeada e apenas no capítulo XXXI, quando se dá o Equinócio de Outono, na Feira Medieval na Batalha, em Setembro de 2010, é que há a junção das duas fações.
O período que comporta o século XV surge caracterizado através da atuação de personagens históricas, como as da família real, do Clero e da Nobreza, e de personagens fictícias, que conferem à ação um relevo fulcral na revisitação da História. Quanto à caracterização física das personagens, estas têm uma caracterização predominantemente direta, feita pelo narrador. Apenas Joana apresenta um retrato psicológico, permitindo-me assim falar de um tempo psicológico no romance, por estar relacionado com as emoções, a sua problemática existencial, ou seja, a forma como ela sente a passagem do tempo. Curioso é verificar como ela, sendo psiquiatra e estudiosa da mente, vive as suas emoções e os seus pensamentos.
A Carta do pai de Joana (capítulo IX), dirigida a esta, além de representar a junção das duas épocas, a passada e a presente, é o desvendar do passado genético da família e o ponto de partida para a alteração de Joana como personagem, pois dá-lhe a conhecer uma realidade que não conhecia. Ao lê-la, a psiquiatra toma conhecimento da vida de D. João II, o Príncipe Perfeito, da criação da Ordem dos Cavaleiros de Santa Maria, a sua caracterização e a ligação a ela, através do seu tetra-tetra avô, Dom Jorge, e do seu bisavô, Dr. João de Meneses.
Se, por um lado, César Alexandre Afonso desconstrói as várias épocas da História que são essenciais para a existência da Ordem dos Cavaleiros de Santa Maria, por outro, através da intervenção de Joana, constrói subtilmente o presente.
No final do romance, cumpriu-se o desígnio de gerações de Cavaleiros: proteger o Segredo de Santa Maria, possível através da criação de um código específico, a expressão «O tempo é de Coruja». É no presente ficcionado que o Segredo de Santa Maria é reunido: a Espada de Santa Maria, o Diário do Príncipe e a Coudelaria de D. João. O filho de Joana será o herdeiro do destino, que terá de fazer a sua própria viagem, cumprir a sua missão e ser ele próprio um Cavaleiro da Ordem.
Para finalizar esta minha apreciação de Espada de Santa Maria, considero que a obra é um exemplo do espelho da História refletida na ficção e por isso recomendo a sua leitura a quem goste de ler, mas particularmente a quem se interesse pela História de Portugal e por perceber os sacrifícios que nobres homens passaram. É, com efeito, um livro que trata a História de um povo na sua grandeza, permitindo um retornar à memória coletiva, e que questiona o que fomos, para avaliar o que seremos.
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Marisa Luciana Alves nasceu em Vinhais, em 1976 e é professora de Português e Inglês desde 1999. É Mestre em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade Católica Portuguesa (Viseu) e Licenciada em Português-Inglês, pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Vila Real). Autora de quatro livros, entre os quais um de literatura infantil e uma novela, tem participado em coletâneas com os seus contos e poemas. Foi a vencedora de um concurso literário em 2014.
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