SOMBRINHA VERMELHA – por Fernando Corona

Imagem: Desenho de Lourdes Ximenes

Nagô acompanhou com o olhar as mucamas deixando a praia rumo à Casa Grande. Tiveram de ir acudir à Sinhá Flora que havia começado com as dores antes do tempo. Todos esperavam a cria pra janeiro, mas talvez o calor demasiado estivesse precipitando todas as coisas. Tinham vindo avisar que ela gritava palavras feias e gritava muito. As negras sabiam que podiam deixar Sinhá Pequena sozinha com Nagô que era escravo de confiança, então por isto se foram sem preocupação. Nagô era nego bom. Nem precisava feitor por perto. Desde miúdo tinha por tarefa entreter Sinhá Pequena que era pouquinha coisa mais nova. E fazia isto muito bem. Até parecia nego educado, Nagô!

Quando as pretas sumiram atrás dos cômoros, Nagô olhou para Sinhá Pequena, sentada na cadeira de palhinha. Toda de branco, com aquela sombrinha vermelha cortando o céu de dezembro era uma boniteza só. Uma boniteza que doía. Ao fundo da praia deserta, atrás de Sinhá e a sombrinha, Nagô podia ver o infinito do norte e quantas vezes imaginou roubar cavalos e levar Sinhá pra lá com ele. Se galopassem pelas ondas não deixariam rastro. Poderiam ganhar algumas horas até que os patrões descobrissem a fuga, e então se meteriam pelo mato adentro e caminhariam até que achassem o outro mar de que tinha ouvido falar.

Sinhá Pequena estava olhando para ele também, este rosto suado e sereno. Sinhá gostava daquele cheiro de capim que ele tinha desde a infância, quando ficavam de retoço pelos jardins da quinta. E aquela pele suave e tão negra era o motivo de tantas noites intermináveis e febris. Ao fundo da praia deserta, atrás de Nagô, ela podia ver o infinito do sul, que sempre pensava que se tivessem bons cavalos, poderiam galopar em direção às terras mais frias, lá onde não tem gente, lá onde uma branca e um negro podem se amar até que Deus desista.

Agora olhavam para o mar revolto e encrespado.

– Hoje o mar está feio.

– Nunca vi tão feio, Dona.

– Não me chama assim. Não tem ninguém perto.

Nagô, sem tirar os olhos do mar e como se não tivesse prestado atenção ao que ela dissera murmurou;

– Até parece castigo de Deus.

Sinhá Pequena suspirou e iniciou a frase que ele já sabia que viria, pois já tinha lido nos olhos e nas ancas dela.

– Nagô. Tô esperando um filho teu.

Neste momento, uma onda avançou um pouco mais, chegando até eles e isto fez Nagô sair do transe e balbuciar.

– Olha. A água tá molhando teus pés.

Sinhá, ainda com olhos fixos no mar, despejou as palavras lentamente.

– Se passarmos aquela primeira onda, o repuxo nos leva lá pra dentro. Podemos ir abraçados. Vai ser rápido. Não vamos sofrer nadinha e Nossa Senhora vai nos acolher. Se vais morrer, quero morrer contigo.

Sinhá não ouviu resposta. Viu Nagô correndo e desaparecendo atrás dos cômoros. Sinhá sorriu. O mar, talvez o mar… mas só depois, se carecer. Nagô vinha trazendo os cavalos que reverberavam naquela soleira. Tomaram a direção sul e galoparam pela água sem trocar palavra. A sombrinha ficou jogada na areia. O vento nordeste, como sempre, chegou no final da manhã, e a foi expulsando da praia até que ficasse presa em meio a juncos e cactos.

Marguerite estava sentada num pequeno café, olhando atentamente através das grandes janelas. Era um dezembro gelado. O dia havia começado ensolarado, mas a previsão do tempo avisara que choveria forte na parte da tarde. Marguerite esperava pela chuva anunciada, pois nos sonhos recorrentes que estava tendo nas últimas noites, ela era encontrada por alguém em meio à multidão, e era localizada por portar uma sombrinha vermelha. Não tinha sido tarefa fácil encontrar a sombrinha nas lojas do ramo, pois vermelho não estava na moda e Marguerite andou toda Champs Elysees até lograr seu intento num brechó requintado. Pagou a pequena fortuna de oitenta euros, mas a sombrinha tinha exatamente o tom vermelho vivo que possuía no sonho, e isto a deixou satisfeita com a compra.

Nestes sonhos, de quase todas as noites das últimas semanas, as imagens sempre se dissolviam no exato momento em que ela desvendaria o rosto de quem se aproximava. Ela sabia que era um homem, sabia também que havia uma alegria familiar neste encontro, mas o rosto lhe era impossível ver. E agora são quatro da tarde e logo vai começar a escurecer e a chuva é necessária para que ela possa sair com a sombrinha no meio do povo e caminhar pela Montaigne tanto quanto for necessário, como havia acontecido na tarde anterior, até que se vá a luz do dia ou até o momento de parar e entrar exausta em qualquer bar para tomar café, fôlego e coragem para chamar um táxi e voltar para casa.

Finalmente, lá fora as pessoas começaram a abrir seus guarda-chuvas e sombrinhas negras em sua maioria, e Marguerite sorveu o último gole do chá que já estava morno e tomou o rumo da porta que se abriu sozinha com a força do vento frio. Com a sombrinha em punho, ganhou a Montaigne, se misturando a uma gente ansiosa que apressadamente ia deixando seus escritórios sob trovões, gotas que iam se tornando mais robustas e lufadas que espanavam papeis e faziam as placas de rua rugirem. As nuvens deslizavam e eram de chumbo e a paisagem que se formava era uma espécie de doce caos, era a chuva que ela esperava, eram as cores que ela queria ver e tudo isto lhe deu a impressão de que todos que ali caminhavam, estariam indo para seus encontros sonhados, e ela procurou ver nas fisionomias dos passantes algum traço que denunciasse isto, mas já estava se tornando impossível enxergar a meio metro de distância, pois a enxurrada e o vento já dificultavam a simples locomoção e Marguerite viu o trânsito parado, os carros estáticos, com luzes acesas, as pessoas frenéticas procurando marquises que já não protegiam, gente que ia ao solo por resvalar na corrente que se formava ou por serem empurradas pela ventania ou por homens mais robustos que deixavam cair seus guarda chuvas deformados na calçada e então ela já sabia que não poderia voltar atrás, para a segurança do café, pois a torrente que descia em direção ao rio lhe impossibilitaria a tentativa, e a solução seria encostar-se à parede, e avançar pela avenida que ia sendo tomada rapidamente pela água, é preciso avançar um pouco mais que seja, e quando a sombrinha vermelha vergou como um brinquedo de papel, Marguerite foi empurrada por uma mulher gorda que gritava ensandecida, sendo arremessada de encontro a uma porta que se abriu com o peso de seu corpo e que com extremo esforço, já do lado de dentro, ela conseguiu fechar e pode ver pelos vidros o desespero dos que estavam lá fora, se debatendo, lutando contra as águas que vinham de todas as direções.

Marguerite, encharcada e paralisada, assistindo ao manicômio que havia se transformado a Avenida Montaigne, exclamou quase gritando:

– Que tempo horroroso!

– Nunca vi tão feio, Dona…

Numa vertigem, Marguerite se voltou e viu o rapaz, em frente a um balcão, olhando fixamente para ela com um sorriso límpido. Ele completou a frase.

– Até parece castigo de Deus.

À sua volta, havia muitas prateleiras com livros antigos e carcomidos, mas em vez do típico cheiro de mofo e papel velho ela sentiu uma estranha maresia no ar.

– Olha. A água tá molhando teus pés.

Marguerite viu a água que, invadindo o sebo, passava por cima de suas botas e reparou também que sua sombrinha estava escangalhada. Neste momento compreendeu tudo o que estava acontecendo. Deixou a sombrinha cair ao solo, pois já não precisaria mais dela, e se aproximou do homem que não desfazia o sorriso. Colou o corpo ao dele ternamente, e assim,  os dois  abraçados, puderam ver a sombrinha vermelha sendo levada pela água em direção aos fundos da loja. Por entre as varetas retorcidas havia pedaços de junco. Junco e cactos.

Imagem destaque:  Desenho de Lourdes Ximenes.

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Fernando Corona (Porto Alegre, 1958). Pianista, produtor musical e compositor e está iniciando na atividade literária. Tem uma página no Facebook e um Blog com o título de CRÔNICAS, nos quais o humor é a característica principal.