UMA NUANCE NAS NÓDOAS (III)- por Lucio Valium

ARMAÇÕES

manhã negrume gruas pinças
bisturis a rasgar o corpo da cidade.
cabos de aço. sufoco de redes neuronais
doenças no desenho de labirintos.
grades nas ruas ao alto para encantar a vida dos lordes
torturas babadas em majestosos gabinetes.
e nós animais visuais
avançando para evitar o cerco.
desprezando os feridos e a máquina
ávida de obediência e de presas.
e nós animais de memória
cansados de olhar fixo na garra mortuária.
alimentamo-nos de pétalas e vinho no fundo do bosque
onde vemos ao longe o fumo da engrenagem.
lemos em nossos cadernos fórmulas tenebrosas
apontamentos para ser simples na terra.
e nós aqui ainda colhendo flores e imaginando frutas
nós em asco odiando engalanados crápulas.
os que rejubilam com projetos de luxo letal
nós em estratégia sem meios. quase desterrados.
somos meigos em nossos esconderijos e endurecemos
vendo o espetáculo infame quase já sem humanos.
as máscaras tão vazias
uma epidemia irreprimível de cenários de lucro.
o esgoto o nojo o vómito
eu não estou deprimido estou vivo.
leio os personagens em seus artifícios
que querem rapidez e limpeza.
são autores que deixam marca
na crosta terrestre onde espalham carne quente.
e nós viventes em invenção
ainda comemos em mesas limpas.
com suas toalhas humanas
e bebemos para acariciar o coração do tempo.

DEDOS

Os que dirigem estes blocos enviaram um recado. Querem que lance dados para se ouvir o eco em outros corredores. Sinistros. Pensam avaliar a performance. Querem rotular a minha memória. E a relação que tenho com os convidados das sessões. Pretendem classificar o modo como ligo as palavras. A forma de olhar e a simetria dos pensamentos. Se pudessem analisavam os diálogos da sombra com as paredes. E os uivos repetitivos contra a impostura. Mas escapa-lhes o que procuram. Nada disso interessa a quem se sabe fugaz. Importante é o rigor dos dedos para tocar em ti. A sinfonia que amacia os invernos para golpear geometrias implacáveis e cravar as unhas na terra. Escrever com elas nas tuas costas enquanto sonhas. Vi cigarros mais finos no escritório sobre um vestido novo, pimenta negra espalhada na mesa e os cálices ainda por lavar. Deito-me no chão e recordo alguns escritos que recebi. Os que vão às sessões escreveram-me. Guardo duas ou três folhas que levo para sempre. Certamente não voltarei a vê-los. Não sei onde vou.

SONS

É o tempo de evitar sons e palavras chegados à condição de esterco. Não entrar no lodo da lamentação. Mostrar novos sinais. Canalhas e embuste merecem outro código. Palavras e silêncio bem afiados. Um desprezo arrogante e a força de estar nos sítios até ao fim. Escapar à teia asquerosa e ir ser para lá do simulacro de um presente a que chamam vida. Comércio de brilhantes. Estar à parte e ultrajar esse lixo funesto. Viver com prazer e despojamento longe dele mostrando o que se é. Dar passos que agem. Estive a falar com o tipo do café e a beber bagaço. Deixei o escritório como um ladrão medroso. Não toquei em nada. Tenho que voltar à medicação para que passe nos lugares como se não exista. E lhes diga o que não querem ouvir. Amanhã vou buscar uma navalha para afiar cotos de lápis. Espero um livro que vem da Catalunha. De conversas entre médico e paciente. Um escritor internado. Aqui pássaros e comboios nocturnos. Na noite da hospedaria as linhas do teu ombro. A escuridão lenta.

TRANSLAÇÕES

Olho a noite pela janela. Luas doidas nuvens. A velocidade do mundo a lentidão dos gestos. Fumo o mecanismo terrestre o cérebro. Penso roldanas senhoras de si. Distantes. Ligadas. Tenho dormido na doçura de tocar os teus pés. Caminho bem no escuro onde a tua alma sai mascarada pela madrugada. Ontem chorei a ver as imagens de um pintor jovem a olhar nos olhos um pintor velho. O jovem estava meigo. O velho sabia de loucura. E viu-a nos olhos do jovem. Não me vejo velho mas sinto o tempo nos ossos. E por vezes faltam-me asas nas pálpebras. Os corredores da instituição são um tormento como brocas perfurando os ouvidos. Os do gabinete central nomearam-me para um papel de responsabilidade. Pensam que sou um outro visível. Veem pouco. Ficam pelo pano. Devaneios e afrontas não alcançam. Neguei a imposição. Disse que não fazia. Teimaram. Não faço. Recuso. Volto a recusar. Desistem. Saio dali mais livre. Vou para os corredores passeando no grande átrio. Deslizo casmurro estranho na fala. E nada dizem que encaixe. Já não há perguntas. Passam anos sem uma. Agora tenho conversado com um jurista porque sabe de vinhos. Na cozinha há laranjas azedas que trouxe de Fiestas de Baco. Lá onde é o norte montanhoso fui em viagem com o homem dos lábios azuis e das grandes tesouras que dá o seu suor às plantas. Bebi com os medicamentos numa barraca à beira da estrada. Fiquei afetado mas sem a loucura do jovem pintor. Que trato de amigo. Chove em silêncio um cigarro.

ENVIESADO

Ontem cheguei encharcado. Na cozinha havia boa desarrumação e uma luz lânguida. Dormi sem comer. Bebi e li. No bloco burocrático quiseram impingir-me uma função analítica. Disse ao novo delegado que sofro de amnésia decisória, fobia à grelha legalista e aos picos da coroa crística. E que tenho alergia subcraniana a certo articulado verborreico. Por fim alertei-o para as vertigens que os decretos me provocam. Não desempenho essa função. Disse. Não piso o mundo para isso. Engoliu a desobediência. Substituiu-me por um tipo de gravata. Fiquei grato. Celebrei com tinto rasca num café sujo. Andei pelas imediações a não fazer o que quer que seja. Sei que continuas a ouvir comboios e te dedicas à alfaiataria. Usas objetos cortantes e fazes um livro pela noite dentro. É belo o ato. Imagino ao adormecer o que é o amor em ti. Um devaneio meu. Nenhum homem sabe essas coisas. Na instituição voltam a mostrar as garras. Pretendem avaliar as condições da minha condição. Sei qual o objectivo. Querem ordenar classificações. Empilhar corpos. Folhetos de cegueira. Não me vou preocupar. Sigo uma forma de lhes ocultar o ser enquanto vigiam e são vigiados. Mortais em ilusão. O fim da tarde deixa-me com alucinações. E tu ficas bem de verde.

NÉVOA

Cai lentamente um véu branco. O corpo debate-se com o festim dos vermes. Tenho os pés em gelo e o estômago um inferno. Mas a cabeça já não está a latejar. Posso fazer a ceia com boa dose de especiarias. Antes vou ler na cama. Escrever curtas frases. Tenho duas botelhas de tinto. Ainda há uísque. Ouvirei na cozinha músicos de Jajouka. Pela manhã entrei na livraria Lobotomia e trouxe um livro do magoado Artaud. Escreveu um título belo A Arte e a Morte. Três letras iguais em cada uma. Afirmou que a alma dos homens não está nas palavras. Não a encontrei também em outro lado. Gostava de láudano e dizem que escreveu a última frase com hidrato de cloral. O animal homem tende a sedar-se e eletrochoques cruzados com os surrealistas. O que não melhorou a imagem dos apaniguados e do líder. O teatro cruel e o fim das máscaras. Delirava o expulso porque não podiam expulsá-lo do que era apesar das reclusões e incursões. Onde o seu fim senão no palco da vida. Era um dos que fazem a poesia de ser no corpo palco da vida corpo. A carne dor e equívocos na fúria do corpo. A arte mental em devaneio vivo.

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Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!