Trinta e cinco anos sem escutar ao vivo a voz de Nara
Já se evolaram quase quatro décadas, mas parece que foi ontem. Nara Leão se apresentando no palco do Teatro Rivoli, num show memorável, dedicado ao camarada Adriano Correia de Oliveira. Não demoraria que ela começasse a padecer do tumor cerebral inoperável, que acabaria silenciando sua voz tão encantadora quanto interventiva. Apesar desse peso e desse pesar, esta cidadã carioca – embora natural de Vitória, capital do Espírito Santo – não abdicou de continuar manifestando determinação e coerência, atributos apanágio tanto da mulher como da artista.
Eis um pertinente exemplo. Na entrevista coletiva, antes do show, alguém perguntou se Funeral de um Lavrador, música de Chico Buarque, estava no roteiro. Ela disse que não. “Ainda por cima, não sei a letra de cor, senão…” No fim da entrevista, eu e o radialista Alberto Guimarães fomos para casa dele, copiamos a letra. Antes do concerto, a entregamos a Nara. E nos sentimos alfinetados pela emoção quando a vimos pousar a folha no tablado, pegar no violão e cantar o dolente poema de João Cabral de Melo Neto, que editara no álbum Manhã de Liberdade (1966).
“Temos de continuar a luta”
Mais uma vez sobrevoando o Atlântico, Nara Leão veio a Portugal para um par de concertos em Lisboa e no Porto. Na Invicta, seu palco foi o Rivoli. Mas antes de subir ao proscênio, a cantora de Pedro Pedreiro sentou-se na plateia para uma conversa sem pauta prévia, livre e liberada, sobre sua carreira, o Brasil e a música popular brasileira.
Ela “chegara de mansinho, com o coração cheio de esperança e amor para dar. Vinha vindo com os pés cansados de tanto andar”, como canta, juntamente com Dominguinhos, no tocante Chegando de mansinho.
“Comparando com o que já tivemos de enfrentar – não só a censura como também a tortura -, as coisas já melhoraram muito no Brasil. Mas há ainda muita miséria, os problemas são muito grandes. Eu não sei como agiria. A única coisa que podemos ter é esperança. Vamos ver se o Brasil melhora. Temos de prosseguir com a luta.”, afirma decidida.
Você, Nara, não muda mesmo de opinião! “Não, temos de continuar batalhando para que as coisas melhorem.” É isso aí Nara, você não abdica de ser uma “Mamãe Coragem”, disposta a seguir em frente, segurando o rojão.
Um casal nota 10
Exausta, mas gratificada, Nara estava a escassos metros do término da digressão que se realizou segundo o figurino bossa-novista de “um cantinho, um banquinho e um violão”, conceito do álbum Nara e Menescal. Apenas algumas horas a separavam da consagração que recobriria sua voz doce e poderosa (1985). O inseparável violão até já reluzia no tablado iluminado. Daí que se entenda o afã que eletrizava o promotor do concerto, o saudoso Avelino Tavares, muito afoito em aligeirar a entrevista. Mas Nara estava gostando do diálogo e concedeu uma prorrogação. “Não, deixa os meninos…”, rogou, lembrando seus tempos de repórter do jornal Última Hora.
Aliás, Nara e o violão são um pouco como o casal perfeito, incapazes de se separarem um do outro, um caso de amor à primeira vista. Merecem nota máxima. Ela toca desde os 12 anos de idade. Só gostava de tocar, nada mais. Aos 15 anos já conhecia Roberto Menescal, Carlos Lyra, Ronaldo Boscoli , Tom Jobim, Vinicius de Moraes e mais algumas das vacas sagradas da bossa nova. No apartamento de seus pais, em Copacabana, ao posto 4. eles trafegavam quase todas as noites, cantando e tocando até às 6 ou 7 horas da manhã. Nara parou naturalmente de estudar aos 17, porque dormia sempre à horas matutinas, só pensava em música. Como ela recorda, “nessa época, não tinha a menor intenção de ser profissional, fazia aquilo para me divertir”.
Um dia, Vininha a convidou para entrar num show com ele. Era o Pobre Menina Rica, com músicas de Carlos Lyra. Ela já tinha recebido muitos convites para cantar. Se apresentara em universidades, por exemplo, mas sempre de graça.
Acabou sendo contratada e fixou seu nome no cartaz do espetáculo. Nara passou a ser uma “rica menina rica”. Musicalmente falando. E não demorou a se tornar uma das divas da nova batida.
“A música popular brasileira é muito rica, porque o Brasil tem muitas regiões culturais, cada qual com seu gênero. Quanto à bossa nova, ela revolucionou não só a música brasileira como a música mundial. Daí que até hoje ela faça imenso sucesso nos EUA, na Europa, no Japão, em qualquer lugar”, ajuíza.
O show Opinião
Japão que ela visitou no final de 1963, juntamente com Sérgio Mendes. Agradado com os desempenhos de Nara, Sérgio convida-a para cantar nos EUA. Todavia, só cantar para ela não tinha muito sentido. Queria se dedicar a uma coisa maior, “socialmente mais útil”, queria estudar Psicologia. “Aí veio o golpe militar de 1964, e eu, que já sentia uma inclinação para cantar músicas políticas (ouça-se o meu primeiro disco, Nara (1964), achei algum sentido ficar. Não fui para os States, fui fazer o show Opinião, com o Zé Keti e o João do Vale, dirigido pelo Augusto Boal e produzido pelo Teatro de Arena. A minha carreira tomou outro sentido. Protestando contra as coisas que achava que estavam erradas, eu poderia ajudar a melhorá-las. Só cantava músicas nesse gênero”, recorda.
“Podem me bater/podem me prender/podem até deixar-me sem comer/que eu não mudo de opinião/daqui do morro/eu não saio não”
Eis o mote de Opinião, a canção de João do Vale/Zé Keti, uma espécie de senha que lhe escancarou a porta do êxito, num período em que se aproxima do samba do morro. Um tema que era também uma maneira de mostrar sua lucidez perante a controversa realidade política brasileira. Realidade que durante 20 anos toldou o país com os excessos do arbítrio e da repressão. Regime que flagelou, como seria lógico, a bossa nova.
“De qualquer modo” – considera- continuo persuadida de que a bossa nova foi o que aconteceu de mais importante e que ainda tem o seu lugar”, reitera.
De acordo com seu balanço, os brasileiros passaram um período difícil nesses anos de ditadura, em que se registrou, de fato, um abastardamento não só musical mas geral. “Os jovens não tiveram a possibilidade de conhecerem o verdadeiro Brasil. Eu tenho dois filhos e ainda há dias eles me diziam: “Mamãe, eu não sabia que o Brasil era assim. Lá no colégio agora estamos aprendendo como é o Brasil”. Agora houve uma abertura política, na qual eu deposito algumas esperanças, e com ela vai haver também uma abertura cultural”, estima.
Nara, você disse um dia que ‘podemos dividir a música popular em antes e depois da bossa nova. Eu julgo que antes do aparecimento desse gênero, a nossa música mergulhava, regra geral, na mesmice dos boleros dor-de-cotovelo e dos sambas-canção bitolados. A sua geração se afirmou cantando o amor, a ternura, o calor com uma batida muito cool, plena de frescor. No entanto, neste momento, eu verifico que a música brasileira está correndo o risco de se submeter às fórmulas de produção ‘made in USA’, perdendo a identidade que lhe asseguram carisma.
“Eu julgo que o Tom Jobim e outros compositores, fizeram uma coisa definitiva. Agora, os novos grupos têm propostas interessantes que agradam à juventude, mas que deixam transparecer algo de empobrecedor. Eu não sou muito chegada ao rock, mas tenho de reconhecer que tem também muita proposta boa. As pessoas têm de fazer apostas novas, principalmente os jovens, e daqui a 20 anos, então a gente saberá o que ficou e o que não ficou. Não dá para saber agora”, observa.
Nara exemplifica o que ficou, aponta a ideia e o movimento que se designou Tropicalismo. Ela conviveu com essa vertente, com esse brado retumbante, que colocou “o verde e o amarelo nas suas canções”, em especial no disco conceitual Tropicália ou Panis et Circenses (1968).
Inquieta, irrequieta, a rotulada musa da Bossa Nova evidenciou seus dons de ubiquidade. Na sua geração, nenhum(a) cantor(a) transitou com tanto à vontade pelas veredas desses três movimentos sincrônicos, a Bossa Nova, o Tropicalismo e a MPB.
Com Açúcar q.b., com muito Afeto
Estranhamente, essa fase alta da carreira de Nara Leão coincidiu com um semieclipse da difusão da sua (cri)atividade em Portugal. Obscurecimento que, fundado em critérios de edição/ divulgação, terá gerado perplexas deduções sobre um eventual interregno, que nunca chegou a verificar-se. Nara continua, antes, inventiva e incansável, cantando sempre novas composições, como ela anunciava em Nonô, com Nelson Rufino. (álbum Os Meus Amigos são um Barato (1977) .
“Nonô, você já sabe de cor/a minha nova canção/composta só para fazer o check-up/da minha capacidade musical/Mas a razão pela qual eu lhe pergunto se já a conseguiu decorar/é pra você cantar onde puder e tiver chance/para me divulgar”.
Narinha trouxe nesta sua segunda vinda a Portugal “os abraços, os beijinhos e os carinhos” da sua ternura de artista. Com Açúcar q.b., com muito afeto. Um regresso desta feita a solo. Em 1969, ela interpretou, no Teatro Villaret, em Lisboa, shows entusiasmantes com Vini e Chico Buarque. Nesse ensejo cantou A Banda, de que foi a primeira porta-voz. Conexão portuguesa que receberia um forte impulso quando, no ano do 25 de Abril, a carioca gravou no Brasil, Grândola e Maio Maduro Maio, de Zeca Afonso, no disco A Senha do Novo Portugal. Do repeteco de agora com o público português, o intercâmbio musical luso-brasileiro terá ficado pessoalmente mais intensificado.
“Tenho recebido” – revela – “de alguns amigos, discos portugueses que são uma beleza. Não entendo porque é que a música portuguesa não faz sucesso no Brasil. Ou talvez entenda. A Amália Rodrigues é uma grande cantora, mas a música portuguesa não se resume a ela”.
Na opinião de Leão, a nova música portuguesa tem letras maravilhosas, fantásticas, reunindo um núcleo de excelentes intérpretes e músicos. Ela promete levar essa boa impressão consigo e tentar divulgar esses expoentes para ver se as relações melhoram. Acredito que, uma vez mais, Nara Leão não vai mudar de opinião!
P.S.: Por desventura, as parcas só lhe iriam conceder mais quatro anos de vida. Em 1986, sua saúde começou a degradar-se, com ela se queixando de cefaleias, cada vez mais frequentes e intensas, acompanhadas de amnésias tão embaraçantes a ponto de fazê-la esquecer as letras das canções. Sintomas que se atenuaram nos dois anos seguintes. Um halo de otimismo se acendeu em 1987, com a edição do álbum Meus Sonhos Dourados.
Porém, os padecimentos provocados pelo tumor cerebral maligno voltaram ainda mais violentos em 1989. A intérprete de Chega de Saudade resistia estóica à desdita, cantando em shows e gravando o disco My Foolish Heart, em que interpretava versões de clássicos da música dos EUA. A cantora de João e Maria (feat Chico Buarque e Sivuca) não teve a chance de o curtir devidamente. Ao meio- dia de 7 de junho, uma quarta-feira, Nara Lofego Leão abandonava a vida para entrar na lenda da Música Popular Brasileira. Até a eterna idade.
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Danyel Guerra (aka Dannj Guerra) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História pela FLUP. E tem-se dedicado ao estudo da História do Cinema. Após ter lecionado História no Ensino Secundário, transitou para o Jornalismo, trabalhando como repórter e redator efetivo (Carteira Profissional nº 803) nos diários Notícias da Tarde, Jornal de Notícias e Correio da Manhã. É o colaborador mais regular da Revista Athena.
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