OS LADOS ERRADOS DA HISTÓRIA – por Francisco Fuchs

Notícia falsa divulgada pelo Hamas e publicada pelo New York Times

 

Os lados errados da história

Não é raro encontrar pessoas, algumas delas intelectualmente vigorosas, que afirmam estar “do lado certo da história”. Curiosamente, elas se distribuem de forma mais ou menos proporcional em lados diametralmente opostos, o que elimina a possibilidade de que todas estejam, de fato, defendendo “o lado certo da história”. Ao menos nisso todos os lados concordam: é impossível que dois lados opostos entre si estejam, simultaneamente, “do lado certo”. Mas aquilo que é simples do ponto de vista lógico torna-se bem mais complexo, e também sombrio, quando encarado do ponto de vista moral; afinal, em cada universo considerado, mais ou menos metade das pessoas estarão, necessariamente, defendendo o mais errado entre os lados de um conflito no momento mesmo em que afirmam defender o lado certo.

Mas o que significa “estar do lado certo da história”? Não me refiro a este ou aquele lado da história em particular, ou aos argumentos de seus respectivos defensores. Refiro-me ao fato mesmo de acreditar-se “do lado certo” da história e a determinados pressupostos que, muitas vezes, acompanham essa crença. Farei aqui algumas anotações a respeito deles e de alguns outros tópicos. Embora breves, talvez elas ajudem a esclarecer o estranhamento que algumas manifestações recentes têm causado.

Uma ilusão retrospectiva: os lados seriam preexistentes aos conflitos

Os lados, na história ou alhures, só passam a existir a partir da emergência de um conflito. Apenas no divórcio litigioso dois cônjuges estarão em “lados” distintos. Os lados de uma guerra não são definidos senão a partir do momento em que um país agride o outro. Duas religiões das quais dificilmente se pode dizer que competem por adeptos, pois vicejam em diferentes regiões do planeta, não formam “lados”. O caso das agremiações esportivas é um pouco mais complexo: elas só estarão em lados opostos quando suas respectivas equipes se enfrentarem, mas, ao mesmo tempo, pode-se dizer que uma das finalidades principais de sua instituição é a participação nesses confrontos. Não se pode dizer o mesmo sobre esposos ou países, que não foram constituídos com a finalidade de lutarem entre si.

Por que essa observação trivial é importante? Porque existe uma ilusão que consiste em reificar o conflito e, com ele, seus lados. É claro que certos conflitos são acontecimentos de longa duração; em razão da antiguidade da contenda, seus lados parecem ter se defrontado desde sempre. Mesmo nesses casos, contudo, trata-se somente de uma aparência: os lados não existiam antes do conflito e deixarão de existir depois de seu término. Mas se essa observação é óbvia a ponto de parecer banal, como podem os lados serem tomados por preexistentes? O conflito é reificado sempre que ele é apresentado como a expressão de uma polaridade estrutural em vez de ser pensado como um acontecimento (circunstancial e historicamente determinado). A metafísica substitui a história: surge uma espécie de chave mestra supostamente capaz de franquear qualquer porta, uma chave interpretativa genérica que será indistintamente aplicada a todos os conflitos, mesmo que eles sejam inteiramente diversos e possuam configurações e razões históricas totalmente diferentes.

Essa ilusão teórica acarreta dois efeitos práticos malsãos. Ela dificulta a resolução dos conflitos, que em vez de serem encarados como problemas singulares a serem pensados e resolvidos, são apresentados como simples casos particulares subsumidos a uma generalidade onipresente. E ela prolonga-se numa ilusão moral, pois em vez de reclamar um novo esforço de compreensão e um novo posicionamento diante de cada conflito singular, demanda simplesmente que se escolha um entre dois lados que constituem uma suposta polaridade preexistente que, sob infinitos avatares, atravessaria a história. Não é de admirar que essa simplificação preguiçosa, que não exige mais do que uma única decisão moral que vale para todos os casos, termine por resultar, entre aqueles que a cultivam, na crença de estarem sempre “do lado certo da história”.

A ilusão dualista: o “lado certo” da história deve ser o único lado da história.

A pretensão de pertencer ao “lado certo da história” geralmente exprime uma certeza moral absoluta. É claro que a certeza não é, por si mesma, deletéria, e não há mal em possuir um punhado de certezas, seja no plano teórico, seja no plano moral. Mas as certezas só são boas quando acompanhadas por um esforço que não teme pô-las permanentemente à prova e adaptá-las, se necessário, às sinuosidades de uma realidade sempre cambiante. Quando, ao contrário, as certezas manifestam um destino inevitável e resultam num programa a ser cumprido à risca, sem margem para ajustes e correções de rota, elas mudam de natureza e passam a exprimir aquela rigidez que caracteriza, no plano moral, o fanatismo em suas várias manifestações.

Mas também o fanatismo tem seus matizes. Ele principia por não dar ouvidos ao outro, mas pode facilmente converter-se em fanatismo extremista quando passa a impedir que o outro fale. Há traços de fanatismo, e às vezes mais do que traços, naquele que chega a pensar que está “do lado certo da história” e nunca admite a possibilidade de estar errado. Mas a inflexão que leva do fanatismo ao fanatismo extremista consiste no desejo de obliteração do outro.

Toda doutrina supremacista se fundamenta numa ilusão dualista que, no limite, se exprime na alternativa puro-impuro. Como notou brilhantemente Jankélévitch, o dual é a primeira forma do plural, mas o dualismo é, na verdade, negação da própria dualidade. “Depois da opção simplista e intransigente que o dual nos impõe, o plural parece compatível com os matizes, os compromissos, os atalhos; o pluralismo diz sim à pluralidade, enquanto o dualismo dizia não à dualidade; o pluralismo é uma aceitação e uma afirmação, enquanto o dualismo é um protesto”.[1]

É assim que a fabulação dos “lados” supostamente preexistentes ganha contornos cada vez mais inquietantes. “O homem possuído pelo demônio da pureza semeia a morte e a ruína em torno de si”.[2] Nenhuma dúvida abala sua idéia fixa. Justificado de antemão pela pureza de seu sangue ou de sua doutrina, ele sente-se à vontade para justificar tudo o que for feito em nome de sua causa. Seu lado é o lado “certo” e, por isso mesmo, deverá ser o único lado da história.

Os lados errados da história

Feitas essas considerações, quero avançar uma hipótese que vale, antes de mais nada, como uma precaução metodológica: não existe lado certo da história. O que isso quer dizer? É preciso fazer duas ressalvas preliminares. Não estou dizendo que todos os lados são equivalentes. Se todos os lados da história estão, de um modo ou de outro, errados, isso não significa que eles estejam igualmente errados. Também não estou apregoando o relativismo e a inação, ou seja, não estou a dizer que, posto que todos os lados estão errados, seria errado escolher um lado.

A recusa radical da dicotomia “lado certo, lado errado” é tudo menos retórica. Ela inspira-se na noção aristotélica de mal menor para escolher, em cada conflito, não o lado “certo”, mas o lado menos errado. Escolha adulta, sopesada, matizada; escolha que, mesmo sendo feita com toda a convicção, é incapaz, em virtude de seu caráter, de converter-se num fanatismo. Numa palavra, a desconfiança sistemática em relação à crença na existência de um “lado certo da história” é parte integrante de um esforço mais amplo para impedir que a idéia de pureza contamine a vida.

Os lados mais errados da história

Foi inevitável constatar, ao longo dos últimos três meses, que muitos meios de comunicação, governos, organizações internacionais e universidades tiveram e continuam tendo dificuldade para confrontar o discurso do Hamas[3] e julgar suas ações pelo que elas são.

Como podem professores e estudantes de universidades “de elite” ignorar o caráter supremacista e genocida daquela organização terrorista? A julgar pelo apoio que o Hamas tem recebido em países democráticos, é possível dizer que estamos presenciando uma espécie de efeito Dunning-Kruger espelhado na esfera moral ou mesmo, em função da desinformação generalizada a respeito do conflito e dos atores nele envolvidos, um efeito Dunning-Kruger tout court.[4] Mas a mera constatação de uma incompetência, moral ou outra, é incapaz de conduzir para além da indignação e da diatribe. É preciso dar um passo a mais e fazer um esforço para tentar compreender quais são as maneiras de pensar e de sentir que condicionam esse desempenho intelectual e moral deficiente.

Não é por um simples golpe de sorte que aqueles que cometeram e filmaram as atrocidades cometidas em Israel no dia 7 de outubro ainda consigam, a despeito delas, arrebanhar alguma simpatia. Uma das táticas para obter o apoio da opinião pública é bem conhecida: ao forçar a confusão entre a população comum e sua máquina de guerra, o Hamas multiplica as baixas civis que irão alimentar sua máquina de propaganda. Desse modo, impondo números sempre crescentes a essas baixas, eles insinuam o fantasma de uma equivalência moral entre baixas civis, sempre lamentáveis mas inevitáveis numa guerra, e os mais atrozes crimes motivados por uma vontade deliberada de genocídio.

Mas essa é apenas a tática mais visível — porque propagada de forma ininterrupta nas redes sociais e pelos meios de comunicação tradicionais — da organização terrorista. De algum modo, o regime supremacista e opressor do Hamas, que investe em mísseis e túneis os muitos milhões de dólares que poderiam mudar a sorte do povo Palestino, consegue ser percebido por muitos como um “representante dos oprimidos” que luta pela “resistência” e pela “libertação” desse povo.[5]

Essa espantosa inversão só chega a ocorrer porque o Hamas sabe explorar muito bem os pontos cegos de nossa cultura. Assim, em vez de percebermos o Hamas pelo que ele é, uma organização terrorista explicitamente engajada no extermínio do povo judeu e num conflito mortal entre a civilização islâmica e as demais civilizações, nós o enxergamos através da lente idealizada de um dualismo que pretende explicar a realidade social e todos os seus conflitos a partir da dicotomia que opõe opressores e oprimidos. Graças a uma manobra ideológica simplória mas astutamente executada, o dualismo do terror acaba encontrando eco e respaldo no dualismo que se tornou hegemônico no ensino superior das nações democráticas.

O paralelismo entre o visível e o invisível — entre a tática de guerra e a manobra ideológica — é evidente. O corpo do terror esconde-se nos intermináveis túneis subterrâneos, nada oferecendo ao nosso olhar superficial senão os civis que se oferecem (ou são forçados) ao martírio; e seu propósito de poder totalitário oculta-se (embora, como tudo que é invisível, ele não tenha, a rigor, onde se ocultar) sob um fictício propósito de “libertação”. Desse modo, além de aliciar desde a infância uma parte considerável da população de Gaza para sua causa, e de usá-la para seus fins, o Hamas ainda consegue a proeza de nos alienar convencendo-nos de que luta pelas nossas bem intencionadas fantasias (como a criação de um Estado Palestino). Tudo isso evidencia que não podemos nos dar ao luxo de subestimar a inteligência dos terroristas do Hamas, que conseguem manipular multidões em nossos próprios países e que contam com o apoio de uma elite que não consegue — ou não quer — condenar o terror supremacista.

A opressão e a tirania sempre assombraram as formações sociais, terminando por dar lugar, em uma infinidade delas, a regimes despóticos: sempre foram muitos os lados errados da história. Mas os lados mais errados da história são aqueles que dividem a história em lados. Posicionar-se do lado menos errado da história significa aborrecer os delírios dualistas e sair em defesa desse mal menor que é
a humanidade.

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[1] JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Le Pur et l’Impur (1960), IN Philosophie Morale, Flammarion, 2018, p. 677.
[2] TOURNIER, Michel. La pureté et l’innocence, IN Le miroir des idées, Paris, Mercure de France, 1994, pp. 171-174.
[3] https://iranprimer.usip.org/blog/2023/oct/19/doctrine-hamas
[4] KRUGER, J. & DUNNING, D. (1999). Unskilled and unaware of it: How difficulties in recognizing one’s own incompetence lead to inflated self-assessments. Journal of Personality and Social Psychology, 77(6), 1121–1134. https://bit.ly/412aB1w
[5] A palavra Hamas é um acrônimo árabe para “Movimento de Resistência Islâmica”.

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Francisco Traverso Fuchs é graduado em História pela UFF e mestre em Filosofia pela UFRJ.