O INAUDITO – por Cecilia Barreira

 

O INAUDITO

(Sonhar

sonhar

sonhar

sonhar)

-Já não respiro

sufoco

não quero falar-

 

-Pões o lenço no decote  e em pano de fundo

fecho as mãos numa epístola

as borboletas nascem episódicas-

Ele era como um animal. Um touro. Uma reminiscência de galáxias  marítimas.

Fauno Vibrátil  Latejante.

Ela  era  como os cacilheiros. Atravessava margens do mesmo rio, repetidamente.

Ela progredia nas alcáçovas por ele.

Ele era arte  selvagem desnorte alcateia demónio muro.

Ela queria renascer com ele.

Fosse em que país ou oceano.

Fosse nas mandíbulas fosse  na pele.

(Quando o céu e a terra se coadunavam nos espaços  e nos impérios havia uma história de príncipes e princesas . Um beijo hipnótico. A salvação. O ignaro)

Os alarmes disparam. Ele passa no corredor.

Uma adolescente loira  lança-se .

Ele por um instante humilde olhou .

Búzios sombras apneias.

Ele nos seus 19 anos deslumbrava alunas e professoras.

Sabia da sua aura. Nos trabalhos do desejo era nota 20

Tinha fama de predador.

Bagos de romã e uma cerveja porque não?

Com as calças amarrotadas e uma t-shirt moldada divertia-se  com aquelas hastes de úteros jovens.

Pegou na mota de alta cilindrada

A cidade parada violenta  descida não tinha identificação.

Os campos eram azuis  e verdes  ,consoante.

Chegara.

Num relapso viu-a . Colocava água nas plantas do pequeno terraço da casa.

Aproxima-se e toca-lhe nas ancas

-O Pai  já chegou. Cuidado.

Ele pálido ,pergunta

– Quando ?

-Há  bocadinho.

-E a mãe?

-Tinha ido ao supermercado. Estava a voltar a todo o momento.

 

A todo o tempo a vigília.

Ele amava-a nos seixos e nas têmporas desde sempre.

Eram gémeos.

Partilharam  as águas e as resinas.

Amor do desespero.

Só fugindo, fugindo para um mundo outro

Quando ela tivera o primeiro namoro ele ponderou o suicídio.

Mas em improvisos e meneios tinha-a recolocado   nas estrias das suas mãos .

Ela não sabia como sobreviver   a uma paixão inaudita.

Ele bombeava a paixão e as brumas.

Nunca poderiam ter filhos- seria arriscado

O pai não poderia sequer desconfiar. Era capaz de o matar. De o expulsar

Impaciente,  com os ombros em escada,  diz-lhe em segredo que  está farto dos progenitores

Ela  em bocados de sede referia que só fugindo sem dizer a ninguém o destino

Sentado num improvisado banco , ele esplêndido e em vertigem, exclamou para o Pai que se  aproximava-  Vais ver hoje o jogo ?

– Não sei

– Queres que vá contigo ?

-.Não comprei bilhetes

– Eu tenho. Ofereceram-me dois

– Pode ser

O Pai afasta-se esdrúxulo minguante.

Ela questiona

-Nem costumas ir ao estádio, porquê isto?

– Vou livrar-me dele de vez.

-Não faças disparates Não há crimes perfeitos

Com uma ferida enorme cratera e redenção  por ele passava o branco dos cilindros.

Amava-a tanto que até não media as asas

As estradas eram tortas.

O calor apagava-se  em cabelos longos.

Os abrigos viriam.

Os estádios de futebol podiam ser agarrados estrídulos

E haveria sempre quedas fatais.

♦♦♦

Cecília Barreira é Professora de Cultura Portuguesa Contemporânea na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.  É investigadora integrada do CHAM-Centro de Humanidades. Publicou na Cordão de Leitura os livros de Poesia, Desvarios e Erros Meus (2018) e Voando Sobre um Ninho Fêmeo (fev. de 2019). Iniciou a sua atividade poética em 1984 com o livro Lua Lenta (Europress). É ensaísta e, de momento, cruza a História da Cultura com a Filosofia e a Literatura nos séculos XIX e XX.

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