22 de abril de 1972 – por Francisco Fuchs

22 de abril de 1972

 

Para Alípio Ramos

Todo flamenguista, ainda que tenha nascido muito tempo depois, conhece de cor o melhor time que já defendeu as cores do clube. Depois de enfrentar uma fieira de carnificinas na campanha épica da Copa Libertadores da América de 1981, Zico e sua talentosa companhia foram campeões mundiais. No entanto, e apesar das conquistas notáveis em anos recentes, a lembrança que mais aquece meu coração é a de um remoto e bem menos importante título regional, a Taça Guanabara de 1972. Era uma época em que o rádio era onipresente nas partidas de futebol, tanto para aqueles que não assistiam aos jogos quanto para aqueles que compareciam aos estádios colando ao ouvido seus aparelhos portáteis: pois se as movimentações dos jogadores no gramado constituíam, para os espectadores, a corporeidade visível da disputa, eram as vozes dos narradores e comentaristas que modulavam sua alma.

O radinho de pilha japonês no qual eu escutava música até adormecer era o modelo mais compacto da época; similar em tamanho a um telefone de bolso de hoje em dia, embora mais grosso, sua capa de couro era macia e agradável ao toque. Mas não foi no meu radinho lilás, e sim no rádio do fuscão vermelho de meu pai, durante um passeio vespertino pelo Rio de Janeiro, que escutei aquele Fla x Flu que levou Jairzinho e mais 137 mil adeptos, além de um Presidente que ninguém ali elegera, ao Maracanã. Estávamos na Urca quando Caio Cambalhota marcou seu terceiro gol, deu sua nona cabriola e definiu o placar em 5 a 2. Ao contentamento pela vitória somavam-se a beleza do cenário e a companhia de meu pai. Que mais eu poderia querer?

Mas meu pai gostava mesmo era de cinema, e creio que tinha mais estima pelas filmagens do Canal 100 do que pelos jogos neles mesmos. Ele me falava dos tempos da Vera Cruz, da Cinedistri, da Cinelândia Filmes, da Atlântida, algo que, pelo que me lembro, meu querido tio Eurides, que também fora do ramo, não costumava fazer. E eu duvido que, hoje em dia, ele teria dado qualquer atenção ao futebol — a não ser, talvez, para notar que as imagens que documentam os jogos deixaram de ser cinema e se tornaram meros meios de registro. Eu mesmo já não vejo o esporte com olhos de criança. As apostas, a compra de resultados, a corrupção generalizada; cartolas que seriam mais úteis aparando e ruminando a grama dos estádios; narradores que não sabem a diferença entre um lençol e um chapéu; comentaristas que jamais se comprometem; futebolistas que tornam o drama em farsa, sempre a cair com as mãos no rosto; tudo isso transformou o futebol num espetáculo vergonhoso que, a rigor, deveria ser proibido para menores de idade.

Fui morar com meu pai após a morte de minha mãe, alguns meses antes de completar dez anos. Foi ele que me ensinou a andar de ônibus sozinho, a olhar para os dois lados da rua ao atravessar, a escolher uma boa água mineral ou, se duro estivesse, a pedir água num botequim. Com ele aprendi a lavar o rosto ao voltar para casa e também, quando fora de casa, a lavar as mãos antes de urinar: “Não é ele que está sujo, são suas mãos.” Ensinou-me também o alfabeto grego, e hoje me pergunto se o curso que fiz no Mosteiro de São Bento não teria sido, mais do que o cumprimento de uma obrigação profissional, uma involuntária homenagem ao meu pai.

Apenas depois de adulto percebi que papai jamais perdia a oportunidade de educar-me, e que muitas vezes, ao explicar-me alguma coisa, ele estava, e de caso pensado, a ensinar-me outra. Ele não era desses pais cheios de regras que vivem a dizer às crianças que elas têm de ser boazinhas. Não! Mil vezes não! Ele apenas lançava a isca, e todo o resto teria de ser alcançado por minha própria conta. Por exemplo, ele jamais diria, de maneira abstrata, “preocupe-se com os outros e, se possível, ajude-os”. Em vez disso, ele simplesmente ensinou-me como eu deveria comportar-me ao subir ou descer escadas acompanhado por uma mulher: ao subir atrás dela, e ao descer na sua frente, eu estaria em condições de tentar acudi-la caso ela se desequilibrasse e caísse. A aplicação dessa regra, explicou-me (mas sem usar a palavra “regra”), ainda me proporcionaria um bônus nada desprezível: caso eu mesmo tropeçasse e caísse, jamais passaria pelo vexame de derrubar escada abaixo e pôr em perigo uma pessoa que, por ser (provavelmente) mais leve e menos musculosa que eu, dificilmente poderia suportar meu peso. A mesma “regra”, acabei compreendendo depois, também vale para as crianças, para os velhos e para qualquer vivente que estivermos dispostos a proteger.

Como em obras de arte que entram num crescendo à medida que avançam, os ensinamentos de meu pai foram se tornando mais e mais densos nos derradeiros meses de nossos dois anos de convivência. Um deles foi transmitido pelo exemplo; o outro, por palavras que guardei comigo, mas que só compreendi muitos anos depois. Estávamos a sós quando ele me perguntou se eu gostaria de reviver meu passado, isto é, de viver novamente todos os acontecimentos de minha vida, sem nada subtrair ou adicionar. Eu tinha apenas onze anos e passara recentemente pela experiência de ser o enfermeiro de minha mãe, testemunhando sua lenta agonia, seus gritos de dor, as injeções clandestinas de morfina. Naquele momento, tendo à frente todo um futuro pelo qual ansiava, nada podia parecer-me mais sombrio do que repetir meu passado; e eu respondi que não. O comentário de meu pai foi conciso e ambíguo, a um tempo confortador e inquietante:

— A maioria das pessoas diria a mesma coisa.

Nessa época ele estava tossindo além da conta. Dizia estar ótimo e que aquela tosse era apenas uma bronquite. Não era, e ele sabia disso. Fumava desde os 15 anos, mas largou o cigarro no Ano Novo de 1973 e ficou visivelmente orgulhoso pelo feito. Não foi o bastante. Em julho daquele ano foi internado e não voltou para casa. Foi um enorme choque para todos, pois ele nunca revelou ou deixou transparecer que estava com câncer de pulmão.

Quando Salomão resolve a disputa das duas pórnai pelo recém-nascido, foi sua verdadeira mãe, sua mãe biológica, que dele abriu mão para que não o matassem, e que, por isso, recebeu seu filho de volta. Mas não é inteiramente absurdo imaginar uma outra versão dessa história em que os papéis fossem invertidos, advertiu-me minha esposa: pois há mães e pais biológicos que maltratam sua prole, ao passo que os verdadeiros pais estarão sempre, independentemente do sangue, no coração dos filhos. Ella tem razão. Apenas a morte pode apagar o sangue, mas há algo ainda mais forte que o sangue, e mais perene em suas infinitas repetições.

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Francisco Traverso Fuchs sempre detestou falar de si mesmo, mas terminou por descobrir que pode fingir fazê-lo sem que ninguém o note. Leu, há alguns anos, o artigo de um psicanalista segundo o qual a “regra da escada” teria por finalidade ocultar de olhares impudentes, circunstancialmente favorecidos pela câmara baixa, aqueles detalhes demasiadamente anatômicos da pobre mulher que tem o azar de ser protegida por um macho ciumento. Com isso, aprendeu duas coisas: que nem todos tiveram um pai como o dele e que não há um único bom ensinamento que não possa ser distorcido até tornar-se irreconhecível.

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