NO CENTENÁRIO DE NATÁLIA CORREIA – por A. Sarmento Manso

PORQUE APRENDO E ENSINO, PORQUE ENSINO E APRENDO… NO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE NATÁLIA CORREIA

 

Natália Correia (1923-2023) deixou uma obra poético-literária de qualidade acima da média, ramo da criatividade a que juntou outros como seja a procura dos marcos e das marcas que estão na origem deste retângulo que dá por nome Portugal. Para além de ir lendo a sua obra poética e literária, interessei-me pelo seu pensamento em torno dos arquétipos, das raízes da Nação, e estive por uma ou duas vezes na sua presença, pelos anos de 1980, observando o seu peculiar modo de estar e a rebeldia que os seus atos e palavras encarnavam e como incendiavam os auditórios.

Aconteceu um dia, já depois da primeira década do século XXI, a Idalina Correia da Silva que comigo partilhava e estudava aspetos ligados ao ensino e à aprendizagem, colocar para que eu ouvisse e discutisse o tema Queixa das almas jovens censuradas que José Mário Branco interpreta no seu álbum de 1971 com o sugestivo nome Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, título que foi buscar a parte de um poema maior de Luís de Camões. A letra pareceu-me familiar, mas não a identifiquei de imediato. Na verdade, contendo uma mensagem de lamento, a densidade do mesmo ia muito além do que normalmente são as letras das canções de protesto que marcaram uma época e eram muito básicas, baseadas em um ou dois versos de rima pobre que exploravam a raiva contra o regime totalitário que governava Portugal e confesso que esses refrões de luta e revolta do proletariado nunca foram do meu agrado, ao contrário da arte mural que acompanhava esta forma de protesto, espécie de grafitis e da arte urbana dos dias de hoje que me encantavam. Nesse campo, sim, o meu gosto estético ficava confortado. Ver muros e casas sujas e degradadas profusamente ilustrados a lembrar o famoso quadro de Delacroix (1798-1863) A liberdade guiando o povo de 1830 que viria a inspirar a hoje famosa Estátua da Liberdade, com que o povo francês presenteou os Estados Unidos da América do Norte, erguida na ilha da Liberdade no porto de Nova Iorque, projetada pelo escultor francês Frédéric Auguste Bartholdi, e construída por Gustave Eiffel, inaugurada a 28 de outubro de 1886. Já em modo de assumido protesto também temos que reconhecer o valor artístico da pintura mural do revolucionário comunista mexicano Diego Rivera (1886-1957). A arte mural, insurreta quase sempre, ligada à luta marxista leninista do proletariado, em uma boa parte é mais que uma arte naif, porque se o fosse apenas, já nem seria má. O pretexto e o protesto político estão na origem da melhor e mais criativa arte que emerge com a modernidade, quer nas artes plásticas, quer na literatura, poesia, dramaturgia e restantes expressões artísticas e criativas.

Iniciado o desafio e após ficar claro por parte da Idalina que de facto o que me tinha dado a ouvir era a versão musical do José Mário Branco do poema da Natália Correia com o mesmo nome publicado no volume Dimensão encontrada (1957). Tinha, portanto, que discutir o conteúdo de um poema de uma social democrata convicta e pouco convencional, escrito no alvor da ditadura e tornado canção de protesto por um cantautor de assumida partilha e militância marxista leninista. A verdade é que a partir dessa altura fiz do poema e da canção uma espécie de introdução ao meu ideário crítico em torno da educação escolar que hoje como sempre, só se interessa pelo fazer e produzir, descurando o ser e o fruir. Nada como a poesia para nos lembrar o embaraço que desde sempre constituiu o ensino e a aprendizagem obrigatórias, seja por parte das famílias, dos Estados, ou de ambos, e o lugar indesejado em que as escolas se transformaram ao forçar a natureza livre de cada um a uma série de obrigações sem sentido nem significado.

Mas qual a relação, afinal, desta composição poética e musical com a educação e a instrução? Logo de início mostra que não pode nem poderá haver uma boa educação que assente apenas no racional e científico, ou cognitivo, que é a preocupação última da fundação das escolas atuais que seguem o modelo clássico após a racionalização da vida por parte dos gregos, contrariando, aliás, o húmus em que a escola surgiu que era o lugar de exercício do ócio. E do que se queixam, então, as almas jovens? De não serem ouvidas nem achadas em qualquer processo da sua educação/formação pois dão-lhes “um lírio e um canivete / e uma alma para ir à escola”. Oferecem-lhes tudo até a presumível “honra de manequim” mesmo que apenas seja “para dar corda à nossa ausência” no imperativo de ser tão importante a escola que o não estar se torna como que um crime, ainda que “sem pecado e sem inocência”. Na propalada modernidade e no desejo de que a escola nos seja oferecida como um lugar encantador “penteiam-nos os crânios ermos / com as cabeleiras das avós / para jamais nos parecermos / connosco quando estamos sós”. E nessa instituição “temos fantasmas tão educados / que adormecemos no seu ombro / somos vazios despovoados / de personagens de assombro”. Sim a escola é um lugar deserto de criatividade e audácia, de sonho e fantasia. É como que a região que todos têm o dever de habitar quando deviam andar a vaguear, entretidos no encanto da existência. Mas para aí vão e aí permanecem com a cabeça presa ao corpo e este deslizando sobre a terra, sem capacidade de flutuar nem asas para voar. A matéria opaca impede que a alma possa levitar e ver mais além uma vez que a escola desde o início da sua frequência nos prepara “um esquife feito de ferro / com embutidos de diamante / para organizar já o enterro / do nosso corpo mais adiante”. A escola para nos tornar gente, impede-nos de ser gente. À escola até com frio, fome e sede se era obrigado a ir, mas nela não se podia entrar sujo e desarranjado, distraído e desinteressado, e no seu interior quantas vezes insalubre, nem a cabeça podia ser aquecida com um gorro desbotado, nem as mãos com o bafo da boca, quanto mais com um par de luvas, mesmo que delidas e cheias de buracos. Para normalizar comportamentos e atitudes, regularizar o previsível e evitar a surpresa, continua a prometer e realmente a permitir uma vida materialmente melhor a quem nela tem sucesso dando “um nome e um jornal / um avião e um violino / mas não nos dão o animal / que espeta os coros no focinho”, uma vez que, na verdade, a proporção de cada existente e a medida de cada indivíduo na singularidade em que se enreda “não é a vida, nem é a morte”.

A nossa grandeza é proporcional à nossa pequenez e o espanto e o mistério nunca nos abandonam. A escola quer ajudar a ter, e nessa demanda o ser de cada um para nada lhe interessa. Desempenha uma função semelhante a qualquer empresa de produção em série confundindo seres humanos, indivíduos e pessoas, com motores de combustão, roupas e sapatos, caixilharia de alumínio, bolas de futebol… A plasticidade da poesia, a maleabilidade da literatura, a simplicidade do fazer, desfazer e refazer, da harmonia dos sons e da ondulação dos movimentos, do pleno exercício da subjetividade em que a humanidade se transforma e avança, juntamente com a disponibilidade infinita, sem tempo nem limite que só as crianças conservam é que deveria ser o modelo de escola que a todos mais interessa.

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A. Sarmento Manso, nasceu nos idos de 1964, pelo outono, ao cair das folhas, na aldeia transmontana de Izeda. Ao longo de mais de meio século de existência tem-se dedicado à aprendizagem de pequenas coisas, do lugar que nos pode caber no mundo e de como a beleza nos haverá de tranquilizar.

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