Comecemos por desfazer o carácter equívoco da palavra dramaturgia, usada em Portugal indistintamente entre o significado próprio (a escrita do texto teatral) e a dramatologia, expressão brasileira bem mais adequada ao estudo da lógica do texto, da análise dramatúrgica, que, muitas vezes, aparece, entre nós, como dramaturgia, à mesma. Perpendicularmente outro equívoco resulta da forma de encarar o texto teatral como literatura dramática, que, como a palavra indica, se contém como um género dentro da literatura. Coisa diferente do que é um texto para cena, a que o carácter literário se acrescenta como uma segunda qualidade, sendo a primeira a da sua funcionalidade para cena. Porque um texto para cena é, por exemplo, um texto de Shakespeare, por mais poético e literariamente valioso que seja; e é.
A distinção que proponho, na raiz, resulta do entendimento que faz do texto teatral um género literário, literatura dramática, independentemente da vontade do autor, mesmo que visando a sua representação. Mas é um ‘texto fechado’, normalmente classificado como peça de teatro, onde as didascálias pormenorizam a forma de se realizar em cena e se considera que os seus atributos literários não devem sofrer intervenção para lá de este ou aquele aspecto pontual. É uma visão que resulta do Teatro Romântico, ainda que transposta para o Realismo, incluindo o próprio Naturalismo. De tal forma que se considera, neste tipo de abordagem, que a personagem está contida, e restrita no próprio texto, na determinação do seu carácter. Sendo assim, competência do director (inicialmente o ensaiador, quer dizer o que dirige os ensaios) não ultrapassa os imites de intermediação entre o autor (do texto) e o actor que desempenha a personagem. Curiosamente, assinale-se, também designada, em várias situações, como carácter, ela própria-personagem. A tal ponto que o termo para a nova função, que com autonomia e como expressão própria só surge no século XIX e se impões já no raiar do século XX, vem contaminada deste conceito com o termo mise-en-scène. O ensaiador dá lugar ao metteur-en-scène e este, etimologicamente mesmo, é o que é suposto fazer a transposição passiva do texto dramático para cena. Ou seja, o encenador será, então, o que lê a peça e lhe empresta forma cénica no pressuposto de que ela, peça, é um sistema fechado, em que o que compete é passá-lo de um suporte (literário) a outro (cénico) sem alterações significativas.
Não menos curioso, todavia, é ser em França que a crescente importância atribuída ao papel do encenador como um co-autor leva a abandonar esta ideia de ser mero canal do texto, tornando-se expressão recorrente, por exemplo Le Tartuffe: une création Molière/Lavelli, que em Portugal se apresentaria “O Tartufo” de Molière em encenação de Lavelli”. E mesmo o em é já uma espécie de viragem, uma vez que prevalece mesmo o com… Esta diferença, subtil, como toda(s) a(s) forma(s) de linguagem não é asséptica e como tal lhe é reconhecida importância, mesmo antes e fora da visão dos estruturalistas. Aliás, não menos curioso é, objectivamente, prolongar-se no próprio estruturalismo, na análise do texto, a ideia de que nele está contida toda a estrutura semiótica que determina a forma de realização do objecto cénico.
Vindo de uma tradição alemã muito antiga, independentemente da forma como se apresenta, com a emancipação da encenação, rapidamente se lhe prende uma disciplina, que é a dramatologia, a mais das vezes, em Portugal, ainda hoje ignorada ou, quando muito, feita pelo próprio encenador. E de forma tímida, determinada pela passividade referida de entender o texto teatral como a dominância (absolutizante) do objecto cénico. É a esta percepção que eu mantenho o termo peça por diferenciação de texto para cena, à falta de melhor designação. E afirmo que um texto de Shakespeare se enquadra nesta última figura, apesar da possibilidade de, igualmente, ser objecto de estudo e de culto como obra literária, poética. Porque Shakespeare [seja ele ou eles quem tenha(m) sido(s)] quando escreve é para a realização cénica do discurso literário, a ponto de ser difícil aos estudiosos da matéria fazer a fixação normativa de muitos dos seus textos, pois estes foram sofrendo alterações, determinadas – ainda que pelo autor(es) dos textos – em função da sua representação cénica. Eles variam de acordo com o ano, muito provavelmente o local e, diria eu sem receio de errar, das próprias disponibilidades materiais e de materialização, incluindo os elencos disponíveis.
A propósito, de passagem da leitura à oralidade, diria que os grandes textos cénicos clássicos (quer dizer: que permanecem sempre actuais e permitem muitas interpretações diferenciadas), apresentam-se, a mais das vezes, como realizações práticas de textos para cena, fundindo-se o escritor com o director na mesma pessoa. Assim é com Gil Vicente, com Shakespeare, com Molière, com Brecht, por exemplo. Mesmo com Sófocles, pelo menos na introdução dos prismas cenográficos que o próprio indica e são decisivos na e para a forma como organiza o próprio texto. Apesar de, é preciso reconhecê-lo, o mesmo se não aplicar a outros dramaturgos de grandeza indubitável, a começar provavelmente em Ésquilo e a apresentar-se próximo de nós com Beckett.
Todavia, independentemente da riqueza literária do texto por si, a dramatologia decorre, maioritariamente, faz-se em função da dominância do texto. O que não deixa de ser paradoxal com muitas das transposições posteriores resultarem em cena com o recurso a linguagens-outras que a suplantam, digamos assim. Merecerá a pena assinalar a deriva do reconhecimento formal da centralidade absolutizante do texto nas encenações de Olivier e outros, cuja canónica passou pela apresentação naturalista dos textos de Shakespeare, no fundo subvertendo-os na prática histórica… Pois que no teatro elisabetano não só era inexistente, ou escasso, o elemento cenográfico – a iluminação (necessariamente) estática (até pela natureza das fontes usadas) – como até as localizações eram dados pela própria descrição textual. Neste sentido, a ousada (e então muito polémica) encenação de Brook de um texto de Shakespeare em que uma batalha não é sustentada numa figuração de muitos soldados, mas antes reduzida (diria que embebida de simbolismo metafórico cénico) a dois actores que representam os exércitos contendores, enquanto uma chapa desce da teia do Teatro produzindo o ruído (também de invólucro simbolista) das armas, aproxima-se com maior autenticidade da natureza do teatro elisabetano do que a forma então tida por tradição das encenações reinantes, como as de Olivier. Ou seja: estas reencaminham o texto para a canónica de época da realização (o naturalismo), enquanto a de Brook traz à contemporaneidade as características dominantes do teatro elisabetano, tal como era realizado ao tempo do mesmo.
Assim, apesar do paradoxo, certo é que a centralidade do texto – que temos como opção enquanto encenador – na dramatologia mais comum (a que chamarei passiva) aceita a peça como modelo fechado. Procura interpretá-la para a realização cénica na reverência da sua escrita: mesmo que formalmente possa ser muitíssimo original, inventiva, com recurso dos demais elementos cénicos de linguagem. Isto não equivale a dizer, note-se, que a dramatologia passiva (convencional) determine uma encenação de menor valia. Estamos a falar de qualidade no sentido de qualificação (natureza, características incidentais).
Castro Guedes, Encenador.
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CASTRO GUEDES, Jorge. Natural do Porto, 1954. No teatro desde os 13 anos, profissionalmente a partir dos 19 como actor e desde os 23 como encenador, tendo ultrapassado já as 100 encenações. Fundador e director artístico do TEAR, encenador convidado de várias companhias um pouco por todo o país, mas principalmente Lisboa. Estagiário de Jorge Lavelli no Théâtre National de La Colline, em Paris. Professor convidado do Ensino Artístico Profissional e Superior. Colaborador em diversas revistas, boletins e jornais da especialidade e generalistas, nacionais e estrangeiros. Autor e apresentador de um programa na RTP2, foi também consultor na área dos dramáticos. Acidentalmente redactor publicitário e director artístico do Casino da Póvoa. Foi director artístico do CDV, Viana do Castelo e fundador de Dogma\12. A convite da Direcção Artística anterior aceitou assumir esse cargo na Seiva Trupe-Teatro Vivo há um ano. É Mestre Em Artes Cénicas pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com 19 valores na defesa de Tese.
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