POEMAS DE CLAUDIO WILLER

 

@Artur Cruzeiro Seixas (1974)

DIÁRIO INACABADO

Às vezes nem fui eu o fotógrafo
daquele mundo que se abria em praias ao por do sol, oceanos à contraluz,
uma natureza de braços abertos
(eu vi todos os rostos do mar)
(o que me dizia o perfil de árvores diante da água?)
fotografia, obra do acaso – sempre – a verdadeira fotografia

quando o belo é terrível

e as fotos nos atraem

por sua tristeza

os registros do que foi – do que fomos? – nunca mais poderei olhá-las sem um nó na garganta ou, se for falar, com a voz embargada

fotos que são notas da solidão, isso sim

o tempo – poderia ser em 1930

no país parado no tempo

(o tempo sempre é outro, sempre é um outro

sempre é assim)

e meu vínculo é com a palavra – só

♣♣♣

MENSAGENS, 1: ENQUANTO RELEIO ALLEN GINSBERG

porque o mundo é mágico

eu escrevo instalado em um canto tranqüilo da cidade

onde servem café

e sei-me parceiro das leis secretas que regem o real

você enxerga / eu enxergo             à frente / atrás

o que foi e o que será

poesia é isto: saber olhar

atentamente, distraidamente

e contar

tudo o que ninguém precisa saber

♣♣♣

“A minha sepultura foi assim”, de Artur Cruzeiro Seixas

POESIA PICTÓRICA, VISUAL: SIMBOLOGIA DA ÁGUA

Quando a praia onde você está é sentida como real unicamente por trazer a lembrança viva dos cheiros, claridade e ruídos da outra praia onde você já esteve, tanto tempo atrás,

quando nada mais resta, a não ser a impressão de que viver foi inútil e de que morrer é algo totalmente idiota,

filtrada por uma sensação do sublime, de estar com os pés no chão.

ou então

quando, ao retornar já madrugada, deu-me a impressão de que se abria um abismo, passagem para outro plano, no encontro das ruas Pernambuco, Rio de Janeiro, Praça Vilaboim, e isso foi igual a perceber que em toda a minha vida nada mais fiz exceto seguir os rastros da minha própria morte.

quando a vida é apenas um pretexto: então, selecionar para publicação o que for mais estranho, anguloso, geométrico, fora de esquadro, que possa ser recitado em um tom de voz bem inocente, de quase surpresa, simulando alguém que mal acredita no que está a dizer

 

POEMAS PARA LER EM VOZ ALTA

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nossos hábitos delicados e perversos

nossas diversões meio delinqüeciais, meio filosóficas

nossos prazeres íntimos e raros

nossas conversas irisadas de memória

gestos aos poucos se entretecendo

na plenitude da nudez familiar

enquanto íamos nos transformando

nos pulsantes personagens crepusculares

de nossas narrativas

rodeados por um silêncio vivo, um tempo latejante

da noite percorrida

para não chegar a lugar algum

 

durante o dia

éramos simples mortais

♣♣♣

“A Perda da Inocência”, por Artur Cruzeiro Seixas.

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Os lençóis brilhavam como se eu tivesse tomado veneno

Herberto Helder

é hora de dizer claramente como são as coisas:
você abre suas portas suas pernas seus braços sua boca seu corpo
você se escancara
eu embarco em você
eu me engajo me prendo me agarro navego em você
plano em um jogo de arriscado equilíbrio
atiro-me em seus abismos
singro suavemente sua brisa
enfrento seus maremotos
viajo por sua velocidade
eu me perco no emaranhado de seu pântano, no labirinto de terra e de areia, de água do mar e de água doce
–  nós somos o pântano e somos o labirinto
eu me cego em sua brancura
e me alço em sua ondulação
você é o planeta onde pouso
a nuvem em que me envolvo
aura estelar, dissipação de caudas de cometas
leva-me e me conduz
nessa dança desarticulada
para mais longe                para o alto               para o profundo
arrasta-me
amor oxímoro
amor, palavra de paradoxos

♣♣♣

FAZ TEMPO QUE EU QUERIA DIZER ISTO

ainda não conseguiram destruir o mar
não foram capazes de estrangulá-lo com fios elétricos e rodovias
nem de o retalhar com cercas
ou de lotear as manchas do seu dorso
o mar ainda existe
presente na consciência dos amantes
nas madrugadas de suor cúmplice estampado nos lençóis
para podermos ver o mar
para penetrar aos poucos nestes refúgios mornos
cavernas do primitivo sonho
útero de filamentos luminosos
é preciso nos desnudarmos totalmente
e sabermos nos reconhecer
pelo toque da pele
como algo que termina e recomeça
dois poemas entrelaçados
mordendo-se como a serpente mítica
o mar e suas gavetas de cristal
seus andaimes de prata
sua borbulhante conspiração de gelatinas
sua sofreguidão de novelas agitadas
seus túneis de trilhos descendentes
sua nudez flamejante
seu tempo de redes desfazendo-se na areia
seus barcos mergulhados na definitiva espera
seus poços artesianos de sal
seu recheio de quadros abstratos
sua cornucópia dos desejos obscuros
seus punhais envoltos em sargaços
suas torres de castelos de beleza pura
suas largas avenidas batidas pelo vento
seu arco-íris dançando o balé do amanhecer
suas mãos de dedos transparentes a perder de vista
guardião dos nomes dos suicidas
que vagam pelas ruas de cidades submersas
labirinto de lembranças
labirinto de luzes e sombras vivas
ondas fazendo valer seu interminável instante de ruidos
entrechocando-se com o furor dos metais nas batalhas de Paolo Ucello
selva de ruídos               selva de ausências                   e a hora da praia
pura realidade de silhuetas
lábio de vagina úmida dos continentes
dorso de gato angorá roçando a terra firme
clamor de corais
ecoando por campos submarinos
afugentando as águas-vivas
que chegam à praia como bandeiras de nações febris

(nesta rua asfaltada e cheia de gente de uma cidade de prédios inúteis que contemplam o mar certos da sua fatal corrosão
encontro um velho e inesperado amigo, ele carrega consigo sua roupagem hindu de seda negra e um estranho olhar fixo de visionário estampado no rosto pálido
recuamos para um lugar tranqüilo, sentamos para conversar entre palmeiras e uma brisa fresca
falamos das pessoas e das aventuras dos anos 60 e 70, tudo o que aconteceu, esses frágeis cenários agora vistos a partir desta perspectiva favorável de uma mesa de bar, eterna como todas as mesas de bar, neste mesmo lugar onde já escrevi outros poemas
próximos demais da areia para que não sejamos rigorosamente verdadeiros
nomeamos os personagens: um que foi morar em Punta del Este para fazer não se sabe o quê, outro que viajou para a França e ficou muito rico, aquele que mora em um barco e contempla o vazio todas as manhãs, alguém que dardeja traços alucinados sobre o papel, os que escrevem coisas absurdas com a firme convicção dos testamenteiros
e há também os que se mataram, os que foram mortos, que se afugentaram de si mesmos e ingressaram na definitiva condição de fantasmas, os navegantes para todo o sempre
o amigo se despede e parte, mergulha para dentro do calor de fim de tarde de um verão precoce, atravessa a barreira de uma cerca viva de folhagens, dissolve-se dentro da névoa que sempre se forma nestes dias
arrasta consigo este feixe de biografias entrelaçadas
e a questão parada no ar do que fazer com tudo isso
levanto-me e vou até a mureta que separa o jardim, agora deserto, da praia
chego mais perto
(o entardecer começa a despejar seu instante de alucinação carmesim)
CHEGO MAIS PERTO
atravesso um filtro de maresias
recolho das ondas a simetria deste poema
nuvens dilaceram-se em um derradeiro combate de cores
enquanto o mar
(um rio mais indomável)                   respira pesadamente
passando à minha frente
com a lentidão solene das procissões de barqueiros religiosos
estendendo seu cobertor de noites
abafando as fogueiras do fundo
acesas nas clareiras onde afogados tentam aquecer as mãos
a presença humana é murmúrio e solidão
restam apenas estes dois navios cargueiros
sombras recortadas contra o longe
dois barcos             –              dois pontos
vozes solitárias insignificantes e nulas
mergulhando no vazio cinzento
e este veleiro
mancha agitada sobre um mapa de negações
deslizando rápido para dentro da sua hora noturna
o humano recua de vez
agora tudo é distância e vazio
dissolvem-se as palavras e a paisagem
resta apenas o outro
tudo o que nos é estranho    como um texto
oco da memória viva
malha obscura de encontros amorosos
o negativo deste nosso mundo de coordenadas terrestres
com seu surdo murmúrio de infinitas fontes

♣♣♣

AS RODAS MECÂNICAS E COM VONTADE PRÓPRIA QUE SURGEM APÓS O SUCUBATO

E agora, como sempre, Hermengardo, o nascer do sol, Fúlvia, a luminosidade, seus estiletes, os panos alaranjados estendidos sobre os alambiques, cada vez mais longe, a distância é uma pedra azulada que define tudo, o afastamento uma sucessão de pirâmides brotando raízes, o caminho um nó no cérebro, a velocidade o rastro do grito que atravessa as farpas, a satisfação vista como possibilidade de espirar profundamente, de novo, um pouco de pó com significado de esperas, Hermengardo, Fúlvia, o colecionador de anéis e dentaduras fosforescentes sob a tempestade, a sorvedora de corações de periquitos imperfeitos porém brilhantes, a predileção pelas escarpas e vertentes, a luz conivente, lembrada, penetrante, dos estados visionários quando saímos do eclipse para saber que o sonho só pode ter um formato tubular. A proximidade sentida como sendo toda uma época, seu cortejo de personagens familiares redescobertos: paisagem a partir da víscera, desdobrando o olho e despejando guarda-sóis feéricos contra a opacidade do mundo.

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Claudio Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Mais recentemente publicou os seguintes livros:
Livro de haicais, de Jack Kerouac, tradução; Porto Alegre: L&PM, 2013.
Manifestos 1964-2010, reunião de manifestos incluídos em livros anteriores, mais um inédito, além de posfácio por Floriano Martins e entrevista por Roberto Piva, Rio de Janeiro: Azougue, 2013.
Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico, ensaio, Porto Alegre: L&PM, 2014.
As pessoas parecem flores finalmente de Charles Bukowski, tradução, Porto Alegre: L&PM, 2015.
A verdadeira história do século 20, poesia, São Paulo: Córrego, 2016.
Floriano Martins, poeta e demiurgo, ensaio, São Paulo: quaisquer, 2017.

Um comentário em “POEMAS DE CLAUDIO WILLER”

  1. Priscila Merizzio diz:

    Fulgurante Willer.

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