REFLEXÕES SOBRE O LIVRO E A LEITURA- por Joaquim Maria Botelho

 

Autor que não publica sua obra, perde a própria definição, porque inexiste como autor. E, mesmo em tempos de recordes de títulos publicados, muitos autores não conseguem sequer ter seus originais analisados por editoras, ocupadas demais em perseguir best-sellers.

O escritor é, antes de nada, leitor. O primeiro passo educativo é dado pela família. O segundo passo é pela escola. Mas, superadas essas duas fases formativas, a pessoa deve prosseguir, assumindo a melhoria de sua própria educação, com a leitura, a convivência com pessoas melhores, o refreamento dos instintos e o refinamento das qualidades. “O homem comum é exigente com os outros, o homem superior é exigente consigo mesmo”, dizia o imperador Marco Aurélio. Este é o segredo da educação: tornar o homem um ser melhor, aperfeiçoado, acima dos tigres. O escritor, com o exercício da linguagem, estimula o descobrimento e a percepção, dá testemunho, contesta, analisa, protesta e sonha. Classificar os textos conforme a qualidade será tarefa do leitor, já pontifica a Teoria da Recepção. Mas classificar é inevitável, embora inútil. O que norteará a análise será, porém, além do gosto, o entendimento dos pressupostos literários.

Além disso, a literatura só consegue ser convincente e, portanto, compreensível, quando o ponto de vista do autor atua em interlocução com outros pontos de vista, com outras vozes. Não falo de conteúdo (ou não teríamos, por exemplo, a deliciosa invenção que é o Barão de Munchausen), mas de estética. O leitor precisa crer na elaboração, no modus faciendi da obra literária.

A literatura lida com significados, por meio dos significantes, evidentemente, que são os signos, se quisermos, ou morfemas, semantemas, palavras enfim. Sem esquecer que o fonema precede a sílaba, na nossa história. O homem primeiro falou, anunciou, pregou, reverberou, praguejou, elogiou. Depois escreveu. A consciência desse fato é importante para situarmos a produção literária dentro de um contexto sociológico, como bem recomendou o mestre Antonio Candido. Só escrevemos aquilo que de algum modo vivenciamos, seja por experiência, ou por testemunho, ou por notícia; de algum modo, aquela vivência está em nós, introjetada, faz parte de nós, então é nossa, então é parte de quem somos. Não existe realidade neutra. Nem no campo da arte.

O corolário desse raciocínio pode ser este: para a história, interessa o fato; para a literatura, interessam as possibilidades do fato. O escritor fala do mundo que poderia ter sido.

Penso que me cabe oferecer uma breve reflexão sobre dois gêneros, o conto e a crônica. Dois exercícios difíceis.

O conto se chama assim exatamente porque, no início da civilização, era a técnica de contar histórias oralmente – lembram-se? o fonema precede a sílaba.

O conto é um gênero literário caracterizado por um único núcleo narrativo, que pode ser um grupo específico de personagens centrados sobre um único conflito – diferentemente da novela e do romance, cuja trama longa e complexa deve incluir vários focos narrativos cujas ações se entrelaçam ao longo do texto, e quase sempre em cenários variados. Ou seja, o conto tem unidade dramática, sem histórias secundárias. Também tem espaço definido e está situado no tempo. Ou seja, tem unidade em termos de espaço e tempo. Como qualquer outro gênero da prosa, deve ter factibilidade, ou seja, precisa que o leitor creia que o acontecimento narrado seja possível, mesmo que seja obra de ficção ou fantasia. É o que Sartre chamava de pacto com o leitor: o autor inventa a história, e o leitor aprova a invenção, criando um laço de confiança de um para com o outro. É o que ocorre, por exemplo, nos contos de encantamento, contos fantásticos, de fadas ou vampiros. O conto costuma ser uma narrativa curta, mas há contos maiores do que romances. As ações são narradas horizontalmente, quer dizer, têm começo, meio e fim, e conduzidas de modo tal que se encaminham diretamente para o desfecho, ou epílogo. Mas há casos em que a criatividade do autor o leva a romper a linearidade do tempo, com lapsos temporais que podem ser necessários para a narrativa. No Brasil, o conto não foi um gênero muito utilizado pelos nossos primeiros escritores, especialmente os da escola romântica, que preferiam o romance. Consta que Machado de Assis tenha sido dos primeiros, senão o primeiro, já na escola realista, a produzir contos em quantidade.

Já a crônica é um instantâneo da realidade. Uma apreciação sobre um momento do cotidiano, no tempo psicológico de que Machado de Assis falava. O autor se utiliza da crônica para comentar ou discutir um fato ou uma ocorrência, sem a preocupação de informar. É o ponto de vista do autor sobre situação, pessoa ou circunstância, portanto é um texto necessariamente subjetivo. Afrânio Coutinho, no seu livro “Notas de teoria literária”, ensina que crônica é um “gênero literário, de prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral efêmero, do que as qualidades de estilo; menos o fato em si do que o pretexto ou a sugestão que pode oferecer ao escritor para divagações borboleantes e intemporais; menos o material histórico do que a variedade, a finura e a argúcia na apreciação, a graça na análise dos fatos miúdos e sem importância, ou na crítica buliçosa de pessoas”.

Pois o que temos na literatura é uma coleção de escritores falando do seu tempo e do seu lugar, obedecendo ao que pregava Machado de Assis. Cada um oferece o seu comentário, o seu ponto de vista, a sua experiência intelectual e emocional em narrativas de variados enfoques e abordagens. É literatura, é livro circulando, que é para isso que serve o livro.

Temos visto uma onda crescente de romances históricos, o que demonstra que estamos a recontar a trajetória do mundo, com novos olhares. Com a crescente produção de romances históricos, pode-se temer que a ficção literária esteja morta e que tenha cedido espaço para a história. Mas nenhuma das duas está morta, embora às vezes possa parecer.

Quero lembrar o crítico inglês Terry Eagleton, que compôs esta alegoria: “Nós sabemos que o leão é mais forte que o domador, que também sabe disso. O problema é que o leão não sabe. Não é de todo impossível que a morte da literatura ajude o leão a acordar.”

Escrever é um fazer político, firme e concreto. Os escritores que acreditam nesse sonho encontram-se hoje em um patamar superior. Lidar com o tempo, com o espaço e com as circunstâncias requer gentileza e generosidade. Oxalá que a memória crítica leve em conta as realizações de cada dia, de todo dia, que acumuladas fazem a diferença.

@Artur Cruzeiro Seixas

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Joaquim Maria Botelho, jornalista e professor, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP e especialista em Jornalismo Internacional pela Universidade de Wisconsin, EUA. Foi presidente da UBE – União Brasileira de Escritores por três mandatos, entre 2010 e 2015. Tem 9 livros publicados. Conta com artigos e contos publicados na Alemanha, Argentina, Brasil e Portugal.