O fingimento de Pessoa «O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.» Com esta frase, começou a conversa de uma pessoa que deu entrada no serviço de urgência de psiquiatria. Não deu, na verdade. Mas podia bem ter dado. Acontece que essa pessoa imaginária vinha com esta frase no seu pensamento, totalmente descontextualizada, desconhecendo o passado do poeta que a escreveu, as suas circunstâncias sociais e psicológicas. Não é motivo para vergonha. Todo o pensador se confronta com o problema da descontextualização. É dela que emana o seu pensamento paranóide, totalmente desenfreado, pronto para satisfazer os mais profundos desejos do narcisismo.
«O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.», repetia para si, o jovem, com a convicção de um sábio. Não sei se o poeta é ou não é um fingidor. Numa boa análise ao autor em questão, teria que se saber o que ele entenderia por fingimento e de que poeta estaria ele a falar. Se de si, como que se apercebendo que precisava de criar defesas, à última hora, perante o seu vislumbre persecutório de que alguém poderia estar a pensar no seu lugar, ou se de um ou de outros quaisquer, sabendo que já não iria a tempo de compor a asneira que fizera, mas ainda assim, teria consciência dela.
«O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.», continuava o jovem, em pensamento, com olhar fixo sobre mim. Rapidamente me apercebi que o jovem estaria perto de perder o seu insight pela desconfiança basilar e primordial que perdera em relação ao mundo. Pensava, na verdade, que todos éramos actores sociais infalíveis, menos ele, cobaia de estudo, modelo patológico, marioneta nas mãos dos outros.
Dei-lhe para a mão o poema inteiro, do qual já não se lembrava bem. Afinal o poema poderia ter uma outra leitura que não conhecia. A leitura da vida, não a da morte. Afinal não estávamos condenados, como pensara inicialmente. Seria antes uma inerência do ser humano pensar como Pessoa pensou. As calhas da roda por onde anda o coração, entretendo a razão; a dor que não é do Pessoa, mas que é de todos, lida no poema; e, por fim, a dor do Pessoa.
Ao fazer este desdobramento, o jovem teve o insight que, sobre a iminência da perda do verdadeiro insight, pôde bloquear a progressão. Afinal, Pessoa não era um fingidor. Era, quanto muito, um mau fingidor. Porque essa dor que ele sentira, era a dor do jovem, tão presente, ali, na minha frente. Era também a minha. Antiga, esquecida no tempo. Era a dor de todos nós, mal mascarada pelo poeta. O verso tramou-o. Não era só uma dor a que partilhávamos com Pessoa. Eu e aquele jovem, uma outra dor também tínhamos e nele, poeta, carinhosamente a reconhecemos. A dor do desamor.
♦♦♦
João Esteves. Finalista do curso de medicina da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, colaborou, até ao momento, com o magazine de poesia «Eufeme» e com a revista literária «Caliban». Natural do Porto, reside em Vila Nova de Gaia.
You must be logged in to post a comment.