18 poemas de Paul Celan
Versões de Luís Costa
Ouvi dizer
Ouvi dizer que na água havia
uma pedra e um círculo
e sobre a água uma palavra
que põe o círculo à volta da pedra.
Eu vi o meu choupo descer à água,
vi como o seu braço mergulhava na profundeza,
vi as suas raízes viradas para o céu, implorando pela noite.
Não corri atrás delas,
colhi apenas do chão a migalha
que tem a forma e a nobreza de teus olhos,
e tirei-te o cordão das sentenças do pescoço
e enfeitei a mesa com ele, onde agora está a migalha.
E nunca mais vi o meu choupo.
Os cântaros
Nas longas mesas do tempo
bebem os cântaros de Deus.
Bebem os olhos dos videntes
e os olhos dos cegos, até ao fundo,
os corações das sombras que imperam,
a face oca do entardecer.
Eles são os bebedores poderosos:
levam igualmente o vazio e o cheio à boca
e não transbordam de espuma
como tu ou eu.
Corona
O outono come a sua folha na minha mão: somos amigos.
Descascamos o tempo das nozes e ensinamo-las a caminhar:
o tempo regressa à casca.
No espelho é domingo,
no sono dorme-se,
a boca diz a verdade.
O meu olho desliza até ao sexo da amada:
olhamo-nos,
trocamos palavras obscuras,
amamo-nos como papoila e memória,
dormimos como o vinho nas conchas,
como mar no raio sangrento da lua.
Estamos abraçados à janela, eles olham-nos da rua:
é tempo de sabermos,
tempo para que a pedra possa florescer,
para que bata um coração no desassossego,
é tempo de ser tempo.
É tempo.
Flor
A pedra
a pedra no ar, eu a segui.
O teu olho tão cego como a pedra.
Éramos
mãos,
esvaziamos a obscuridade, encontrámos
a palavra que vicejou até ao verão:
flor.
Flor, uma palavra de cegos.
O teu olho e o meu olho:
buscam
a água.
Crescimento.
Vai-se folheando
de parede em parede do coração.
Mais uma palavra como esta, e os martelos
oscilam no espaço aberto.
Argumentum e silentio
Para René Char
Acorrentada
entre ouro e esquecimento:
a noite
ambos quiserem prendê-la
a ambos concedeu o seu propósito
Põe
põe também agora ali
o que quer subir do crepúsculo
junto aos dias
a palavra sobrevoada de estrelas
o mar derramado
A cada um a palavra
a cada um a palavra que o cantou
quando a matilha o feriu * pelas costas
a cada um a palavra que o cantou
e caiu petrificada
A ela, à noite
a noite sobrevoada
o mar derramado
a ela, a palavra oculta
cujo sangue não coalhou
quando o dente venenoso
trespassou as sílabas.
A ela, a palavra oculta
Contra os outros, que, de pronto,
prostituídos pelas orelhas dos esfoladores
escalaram o tempo e os tempos
testemunha por último
por último, quando só as correntes soam
testemunha por aquela que que além jaz
entre ouro e esquecimento
irmã de ambos desde sempre
Pois onde
madruga, diz, senão nela,
que na correnteza das suas lágrimas
afundando-se nos sóis, a semente mostra
uma e outra vez?
* No original: hinterrücks anfiel, atacou, ou assaltou pelas costas.
Assis
Noite úmbrica
Noite úmbrica com a prata do címbalo e folhas de oliveira.
Noite úmbrica com a pedra que até aqui trouxeste.
Noite úmbrica com a pedra.
Sem voz, tudo quanto ascendeu à vida, sem voz.
Trasfega os cântaros, trasfega.
Cântaro de barro.
Cântaro de barro com que cresceu a mão do oleiro.
Cântaro de barro que a mão de uma sombra selou para sempre.
Cântaro de barro com o espelho da sombra.
Pedras, até onde consegues ver, pedras
Deixa o jumento entrar.
Jumento.
Jumento na neve que a mão mais despida espalha.
Jumento perante a palavra que caiu cerrada.
Jumento que come o sono da mão.
Brilho que não alcança o consolo, brilho.
Os mortos ainda mendigam, Francisco.
Radix, matrix
Como quem fala com a pedra,
como tu,
vinda do abismo até mim,
desde uma pátria irmanada,
lançada até aqui, tu,
tu de um tempo remoto,
do nada de uma noite,
tu que na nem – noite vens
ao meu encontro, tu
nem – tu:
Outrora, quando eu não estava
outrora, quando
medias o campo, sozinha:
Quem,
quem era aquela raça
assassinada, aquele raça
negra erguida no céu:
vara e testículo?
(Raiz.
raiz de Abraão. Raiz de Jessé. Raiz
de ninguém – Oh
nossa.)
Sim,
como quem fala com a pedra,
como tu
que com as minhas mãos agarras ali
e no nada, assim é
o que aqui é:
também este
solo frutífero se abre,
este
abismo,
uma das coroas
que cresce silvestre.
Grade de linguagem
Redondez de olho entre as barras.
Pálpebra animal tremulante
rema para cima,
concede uma mirada livre.
Íris, nadadora, turva e sem sonhos:
o céu, coração cinzento, deve estar próximo.
Oblíqua, na boquilha férrea,
a lasca fumegante.
Na razão da luz,
adivinhas a alma.
(Se eu fosse como tu. Se tu fosses como eu.
Não estaríamos debaixo
de um só Alísio?
Somos estranhos)
As lajes. Sobre elas,
muito juntas, ambas
poças de coração cinzento:
duas
bocas repletas de silêncio.
Bebo vinho de duas taças…
Bebo vinho de duas taças
e ziguezagueio a cesura
do rei
como o outro
em Píndaro
deus cede o diapasão
como um dos pequenos
justos
do tambor das sortes cai
o nosso naco.
Com carta e relógio
Cera
para lacrar o não escrito
que adivinhou
o teu nome,
que encripta
o teu nome.
Já vens, luz flutuante?
Dedos, de cera também,
arrancados por
anéis doridos e alheios.
Derretidas as pontas.
Vens, luz flutuante?
vazios de tempo os favos
do relógio,
nupciais as mil abelhas,
prontas para a viagem.
Vem, luz flutuante.
Qualquer das pedras que levantes
Qualquer das pedras que levantes
descobres
aqueles que necessitam do abrigo das pedras:
nus
já renovam o entrelaçamento.
Qualquer das árvores que abatas
constróis
o leito sobre o qual
as almas outrora se amontoavam
como se não se afligisse
também este
Éon.
Qualquer palavra que digas
deve-la
à perdição.
Conta as amêndoas…
Conta as amêndoas,
conta o que era amargo e te mantinha acordado,
conta-me com elas:
Procurei o teu olho, quando o abrias e ninguém te olhava;
fiei aquele fio secreto,
o orvalho em que pensavas
desceu aos cântaros;
guarda-os uma sentença que não encontrou nenhum coração.
Só então entraste, inteira, no nome que te pertence;
caminhaste com passos seguros na tua direção,
os martelos oscilavam livremente nas armações do teu silêncio,
o que ouviste uniu-se a ti,
o morto também pôs o braço à tua volta,
e os três caminhastes através da tarde.
Torna-me amargo.
Conta-me com as amêndoas.
Parte de neve…
Parte de neve, empinada, até ao fim, no vento que se ergue para sempre diante das cabanas sem janelas: sonhos rasos silvam por cima do gelo estriado arrancar a golpes as sombras da palavra, entreabri-las à volta dos grampos no fosso.
Estar…
Estar na sombra
da cicatriz
no ar.
para – ninguém – e – nada- estar.
irreconhecido
só
para ti.
com tudo o que dentro tem espaço
também
sem fala.
[O nada]
O nada, por amor
de nossos nomes
(eles reúnem-nos)
sela
o fim crê-nos no
princípio
perante os mestres que
com o seu silêncio
nos envolvem
no inseparável testemunha-se
a hirta
claridade.
[Ouro naufragado]
Atiras-me
Com ouro naufragado:
Talvez algum peixe
Se deixe subornar.
Iluminados…
Iluminados
Os germes que em ti
Alcancei nadando
Libertos à força de remos
Os nomes
Que atravessam os estreitos
À frente
Uma bênção cerra-se
Um punho sensível
À intempérie.
A canção do trapaceiro
Uma canção de trapaceiros e chantagistas
cantada em PARIS EMPRÈS PONTOISE
por Paul Celan
de Chernivtsi, Sadagura.
por vezes só em tempos obscuros
Heinrich Heine
Outrora
quando a forca ainda existia
nessa altura, não é verdade, havia
alguma coisa lá em cima.
onde está a minha barba,
vento,
a minha nódoa de judeu,
a barba que me arrancas.
o caminho era torto, sim
o caminho por onde eu seguia,
depois, sim,
depois era direito.
eia
torto
assim há – de ser o meu nariz.
nariz.
e nós também fomos para Friul.
nessa altura teríamos, teríamos.
pois a amendoeira estava em flor.
amendoeira mandaloeira
sonhadeira mandaloeira
e também a manchaloeira
chandeleira
eia
ah
envoi
mas
ela arvora-se, a árvore.
ela,
também ela
é contra a peste.
outrora
quando a forca ainda existia
nessa altura, não é verdade, havia
alguma coisa lá em cima.
♦♦♦
Todos os poemas foram traduzidos do livro: Paul Celan, Die Gedichte, kommentierte Gesamtausgabe, Suhrkamp, erste Auflage 2005.
Paul Celan, poeta de língua alemã, pseudónimo de Paul Antschel, nasceu em Chernovitz (antiga Roménia, hoje Ucrânia) a 23 de Novembro de 1920.
Em 1938 começa a estudar medicina em Tours. Um ano mais tarde, abandona os estudos de medicina e volta a Chernovitz para aí estudar romanística.
Em 1942, os seus pais, judeus de origem alemã, são internados num campo de concentração. O pai de Celan morre de tifo, a sua mãe é assassinada.
De 1942 a 1943, Celan encontra-se, igualmente, preso em vários campos de concentração romenos, sendo obrigado a trabalhos forçados. Em 1947 é libertado.
Chernovitz está agora nas mãos do Exército Vermelho. Ainda no mesmo ano, Celan abandona Chernovitz para fugir à ditadura estalinista.
Depois de viver durante algum tempo em Viana de Áustria, parte para Paris, cidade onde vai permanecer desde 1948 até ao seu suicídio em 1970.
Celan é considerado um dos maiores poetas da poesia alemã do pós-guerra. Em 1960 foi-lhe atribuído o Georg-Büchner-Preis, o prémio literário mais importante da Alemanha.
Ainda durante o seu tempo de estudante, Celan ocupa-se, em pormenor, com a poesia de Hölderlin, Rilke e dos simbolistas franceses que o influenciam profundamente.
Na sua poesia também se descobrem influências surrealistas (Celan esteve muito próximo da secção surrealista romena) e expressionistas.
O problema da linguagem vem a ser um dos temas centrais da sua poética.
Muitos dos poemas de Celan jogam com a forma fragmentária, cultivada pelos românticos, e procuram sondar, o mais próximo possível, as fronteiras entre o dizível e o indizível. Exemplo disso é o livro: Von Schwelle zu Schwelle (de patamar em patamar).
Numerosos motivos bíblicos bem como o uso de neologismos são igualmente traços marcantes desta poética. Muitos dos poemas de Celan, sobretudo os da primeira fase, espelham, de uma maneira muito original, o sofrimento do povo judeu durante o Holocausto. Deste modo, Celan opõe-se ao filósofo Theodor W. Ardono o qual afirmava que escrever poemas depois de Auschwitz é barbárico.
Paul Celan foi, para além de grande poeta, também um excelente tradutor, traduzindo autores russos, italianos, franceses, ingleses, romenos etc. Entre os muitos dos poetas que traduziu encontra-se também Fernando Pessoa.
Bellos y profundos poemas de un poeta mayor. Y las pinturas de C ruzeiro Seixas maravillosas.
A poesia de Celan tem lirismo, profundidade… A tácita sensação de um beijo invisivel!
Gênio, louco, mito…
Amei! A poesia de Celan tem lirismo, profundidade… A tácita sensação de um beijo invisível no espírito..