
UM CONTENTAMENTO DESCONTENTE
“Há uma justa medida em todas as coisas; E existem certos limites” Horácio
I– Às 24 horas do próximo dia 24 de abril terminam as celebrações populares e institucionais do cinquentenário do levante cívico-militar que, sem efusão de sangue, vibrou o golpe de misericórdia na ditadura estadonovista de Salazar e Caetano, O vermelho, vibrante, só era visível nos cravos que floriram no cano das metralhadoras.
Ao longo desses 365 dias de comemorações, nem sequer o mais otimista aos Drs. Pangloss da classe política dominante se extenuará na entoação de hosanas às virtudes, conquistas e realizações do regime abrilista, como se Portugal estivesse vivendo num mundo leibniziano, como se os portugueses estivessem próximos de atingir o zênite da prosperidade econômica, da justiça social, tributária e eleitoral, das liberdades individuais, da isonomia e da equidade jurídicas, do bem-estar coletivo a que têm direito enquanto cidadãos de um país democrático, onde o estado de direito se alça como firme e bem fundada trave-mestra.
Julgo que só um paladino inebriado por etílicas bebemorações ousará afirmar que está sendo alcançada a harmonia da desejada triangulação dos três “D” inscritos no programa do Movimento das Forças Armadas (MFA).
II– DDD. D de Descolonizar, D de Desenvolver, D de Democratizar. Esta foi a tríade de objetivos civilizatórios plasmados pelos capitães insurgentes na sua plataforma política de redenção nacional, de restauração da legalidade/legitimidade democráticas e de uma equânime estabilidade institucional..
Alguns deles, imbuídos de um lírico idealismo deliraram o desenho de um triângulo equilátero em que esses três D seriam os vértices. Transcursos precisos 50 anos , sejamos desassombrados, o triângulo esquissado corre o sério risco de adquirir uma configuração isoscélica, quando não escalena.
III-A Descolonização ficou, para já, pela metade. A relativa às possessões africanas desenrolou-se com os governos provisórios reféns de um ultimato político e expostos à intensa pressão nacional e internacional. O processo viu-se concluído em tempo record. Aos povos colonizados foi negado o lídimo direito de se autodeterminarem livremente. A soberania dos novos estados caiu nas mãos de autoproclamados movimentos de libertação, na sua maioria eivados por ideologias autoritárias e até ditatoriais. E a magnífica pintura está agora exposta em tempo permanente, nos PALOP. A única exceção tem sido Cabo Verde.
Numa situação muito concreta, a de Timor Leste, o descaso da metrópole ocupante combinado com a sofreguidão fraticida dos movimentos autonomistas redundou numa penosa tragédia humanitária,na qual a Indonésia foi a principal ré. .
IV– ”Navegar é preciso, viver não é preciso.” Competiu à ágil pena de Plutarco inscrever no pergaminho esta lendária frase de Pompeu Magno. Com essa intimação, o general romano visava motivar seus soldados a ousarem na aventura marítima, mesmo pondo em risco a própria vida. Desde que não fosse a dele…
Os navegantes lusos perfilharam outrossim esse repto nas suas odisseias oceânicas. Hoje, finda a epopeia imperial, navegar não é preciso… a não ser que seja no ciberespaço. Agora, viver é preciso. Melhor dizendo, viver bem é preciso. Em 2025, os portugueses ainda estão longe de usufruirem de um sólido e solidário wellfare state.
Por muito que inúmeros decisores políticos se empenhem na propagação dessa falácia, crescimento não pode ser drapejado como sinônimo de desenvolvimento. Impõe-se como inegável que nas últimas cinco décadas, o PIB cresceu, o rendimento per capita aumentou. Porém, mesmo a mais eloquente das retóricas não terá o condão de tecer e erguer biombos que ocultem esta realidade: enreda-se num labirinto a veleidade de gerar, manter e potenciar o progresso econômico e social quando se arca com pesadas dívidas externa e pública. Dificuldades que se avolumam quando esse país padeceu de três bancarrotas (1977, 1983,2011, que coagiram as governanças a recorrerem ao socorro agiota do FMI.
Apesar desses pesares, chagas sociais ancestrais como o analfabetismo e a mortalidade infantil estão, na prática, extirpadas. Embora nos últimos anos, Portugal prossiga galgando posições no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, a população residente não tem beneficiado, em tempo expedito e de modo eficaz e eficiente, do constitucional direito à saúde, educação, cultura e habitação. O estado providência tende a encolher, as desigualdades agravam-se, agudizadas por sistemáticas políticas de baixos salários. A essa contrariedade soma-se a perpetuação de injustiça tributária, que tende a pauperizar as classes médias, assim ameaçadas pelo estigma da proletarização. Uma evidência gritante dessa tendência desigualitária é a eternização da pobreza estrutural que aflige 20% da população e escolhe como principais vítimas os idosos e as crianças.
Suficiente será uma deambulação noturna pelas artérias centrais de Lisboa e do Porto para avaliar e concluir que estamos ainda muito distantes do usufruto de uma economia solidária. Um país desenvolvido, além da liberdade individual e da igualdade perante a lei deve ter também como paradigma, a fraternidade coletiva. Virtude que convém não confundir, com assistencialismo e caridadezinha.
V– Os militares da sublevação do 28 de Maio apontavam a espada à anarquia partidária dos republicanos como um das causas mais deletérias da decadência da Nação. Quando em 1933, o seráfico Salazar se assenhoreou do poder absolutamente,baniu ad aeternum essas “associações de malfeitores”, em favor e em prol da união nacional.
Ao receberem a notícia alvissareira da primavera abrilista, a velha e a nova aristocracia política entendeam ter chegado o tempo do revide, vingando-se de décadas de ostracismo, perseguição, exílio e martírio. Uma maneira de compensá-la de tantos padecimentos consistiu em consagrar uma Constituição (a de 1976, não plebiscitada) tecida, cortada e cosida à medida e a preceito dos dignitários políticos. As sete e meia revisões constitucionais não mitigaram a demopartidocracia imperante (nem esse era o escopo), tutelada por um duopólio de partidos. Como o espaço se encurta, indico somente uma das absurdas prerrogativas: apenas as legendas nacionais podem submeter a sufrágio candidaturas a deputado do Parlamento. Tão gravosos quanto os défices orçamentais são os défices democráticos, apanágio das ditamoles
VI– No próximo 25 de Abril, essa aristocracia comemorará e bebemorará mais um niver da Revolução dos Cravos, coincidente com os 50 anos das primeiras eleições livres e democráticas. Inchados de empáfia, na sua maioria, esses agentes expressarão contentamento pelos feitos da 2ª República, num momento histórico em que o regime se vê trespassado por uma crise de credibilidade politética e por uma paulatina degradação da gravitas das lideranças políticas institucionalizadas. Poucos terão dado ouvidos ao alerta de Horácio contra os excessos e aos seus conselhos à moderação, patentes na epígrafe deste texto..
VII – A ‘Athena’ secunda e perfilha a sensata “áurea mediania” do autor de Ars Poetica. Ela se contenta com os feitos dos 50 anos abrilistas. Contudo, fica descontente com os defeitos e desfeitos averbados no decurso desse empolgante e contraditório meio século. A fim de encontrar uma síntese dialeticamente ambivalente, se inspirou num dos oximoros do soneto O Amor é fogo que arde sem se ver, de Camões. É isso aí, “Um Contentamento Descontente”.
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Danyel Guerra (aka Dannj Guerra) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História pela FLUP. E tem-se dedicado ao estudo da História do Cinema. Após ter lecionado História no Ensino Secundário, transitou para o Jornalismo, trabalhando como repórter e redator efetivo (Carteira Profissional nº 803) nos diários Notícias da Tarde, Jornal de Notícias e Correio da Manhã. É o colaborador mais regular da Revista Athena.
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