MUNDOS DAQUI E D´ALÉM – por Adelina Andrês

MARINHO ou O MENINO QUE CRIA MANDAR NO MUNDO

Foi numa manhã cristalina e fresca de chuva. O vento a assobiar e a fustigar os ramos das árvores e as folhas, e a empurrar as gotas grossas de chuva em todas as direções – um rodopio dançante de água aos bocadinhos, de folhas molhadas e de brilhos muito claros.
Ninguém lá fora naquele pedaço de rua que se via. E, no entanto, uma espera que se adivinhava… Lá vem, lá vem…! É o Marinho, o menino senhor dos sítios de ninguém… Sorridente de vida com um balde de lata redondo enfiado no alto da cabeça, a pega debaixo do nariz… Para andar no meio da chuva abrigado da chuva, pois…
Um sorriso redondo-grande a acompanhar o desenho circular da pega do balde de lata da cabeça no corpo todo feito sério. Gestos largos e caminhar seguro e forte. A cada passo pensado-contado vê-se o peso importante do momento. É a pessoa PESSOA das tempestades.
Desafia-se molhado-fustigado-massacrado!!? por essas forças fortes da natureza mas sabe-se mais forte!! Porque ele Marinho tem a região redonda do alto da cabeça – dele Marinho – sequinha-como-deve-ser no meio daquela tempestade que não devia deixar ser. Mas ele tem…!
“Quem é que é? Quem é que sabe? Quem é que manda? Hã?! Hã?!…” O Marinho é um desafiador. Da rua, das tempestades, da mãe e do mundo. Da rua, das tempestades, e do mundo: nesse dia, a mãe não estava lá!…
Devia ser um domingo. A mãe estava no hospital, a cumprir a obrigação da visita a uma vizinha menina doente. Era uma perna partida por causa de um guarda-chuva aberto num dia escuro de chuva. Veio um carro que a menina não viu.
Na rua molhada, fresca e brilhante de claridade, só o Marinho e a água doce da chuva. O Marinho confia no mundo e não vê não crê nada que se atravesse no caminho dos seus passos. Por isso, quando o vento empurrou aquela trave encostada que lhe caiu exatamente por cima e lhe enfiou o balde pela cabeça, a água e o sangue a escorrer e o choro forte que veio a seguir foi mais pela dor da incredulidade do que pela dor mesmo dele Marinho.
A mãe gritou e chorou, os médicos trataram e curaram, e o Marinho apareceu de branco turbante na cabeça – sempre sempre protegida. Diziam que era fraco da cabeça e, por isso, é que ele andava assim. Maluco maluco maluco, e tão são era o Marinho. E contente. Sempre contente.

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VIGIAR A ESTAR A VER A VOAR

Vigilância de exame de Estatística. Está-se. Parada enfadonhada a vigiar vegetar sem livros para ler. Da próxima vez – eu já sabia – trazer um livro para ler. Vigiar sem punir sem motivos para. Esperância vigilância de exame. Pessoas quietas a pensar a escrever. Fazem caras engraçadas, alguns. Apetecia-me dormir. Ainda são dez horas da manhã, e isto dura até às onze e meia. Não é bom estar daquele lado. Tantas contas somatórios engraçados. Será que sabem fazer?
Está sol lá fora e passam dois seguranças com as casas por detrás. É um cenário pintado e esticado lá ao fundo, fora da janela.
Um candeeiro alto com chapeuzinhos de terminar. Para apagar as luzinhas das velas que devem estar por aí. Vegetação de muitas folhas fininhas que não ondulam com o vento. Não há vento. Há sol e não há vento.
Que sossego aqui dentro e lá fora cá de dentro. Pessoas atentas com testas na mão. A mão é grande na testa pequena. Nunca tinha reparado nisso, assim. Na minha frente, uma mão pequenina que escreve e tecla. Dezassete pessoas em três filinhas. Com ar pensante sem se notar preocupação – estão a fazer. Têm que fazer o exame e têm que passar. Dá a impressão – está bem impressão: estão a escrever imprimir – que sabem das contas. Não se contorcionam nem olham para o teto. Às vezes, olha-se para o teto à espera que caiam de lá as respostas. Olham para as folhas, e escrevem.
Não saio desta sala nem quero sair. Quero só que acabe o tempo de cá estar. Mas, enquanto dura duro, estou cá.
Devia ser outro nome que não vigilância. Eu não estou a vigiar para punir, estou cá! Podia ser estância de exame. Acompanhamento não, porque não estou isso. Estou estância.
Um pássaro voa rápido lá fora. Já desapareceu. Mas há outro. E outro que faz um voo ondulado. Já não faz – já foi!
Uma janela aberta é um cinema lindo de se ver. Casas casinhas brancas rosadas castanhas. Telhados, sem-telhados, telhadinhos. Um poste a erguer-se deles. Isolado. Sozinho. Não se veem os fios que lá estão. Aqui mais à frente e lá fora, um candeeiro com um olho a olhar. Mas falta a menina do olho – só tem íris e pálpebra. Oh!!
Sai um fuminho do meio das árvores. Há lá um indiozinho que fugiu da terra dele. E agora, anda a treinar. Quando voltar vai anunciar a sua chegada com sinais de fumo. Aos outros índios. Vai ser um perito da telecomunicação e chama-se Fumaça Distante.
Da porta, a janela é diferente. Os dois seguranças voltaram. Um deles deu uma voltinha um rodopio. Deve ser para vigiar segurar. Estão vestidos de profissão. Com um emblema castanho que diz isso.
Menina com ar angelical de cabelo segurado por ziguezague. Olha para a folha à frente com um ar calmo forçado de aperto na boca. A desesperar a perguntar alguma coisa às perguntas lá da folha. Tantas perguntas que têm que ter a resposta certa. Primeiro aprendem e depois acertam. Um olhar arregalado. Deve ser para caber mais perguntas nos olhos.
Os cabelos são molduras. E levam patines e tudo. Mas são moles e tomam outras formas conforme. As molduras duras é que não. Cada rosto é uma pintura desenho. Com coisas de pendurar, às vezes. Isso são molduras, ou as pinturas desenhos? Não sei. Não interessa. Devem ser enfeites necessários.
Cada parede branca escura não tem pinturas penduradas. Podia ter. Mas assim é mais limpinho.
Daqui da janela, não há uma casa que se erga sobre as outras. Só o poste. Aquele poste que não se vê os fios. Um carrito preto a passar. Numa nesgazita de casas. Passou só o tempo que durou a nesgazita.

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SECRETÁRIAS

 

Deve ser chato
Ser estar-se secretária
Como um móvel qualquer secretária
Lisa, branca e sem curvas
De uma secretária
Pode até confundir-se
– Desculpe, está a falar comigo,
ou da sua secretária (mesa)?
Dizem as secretárias
Com – ainda – alguns relevos.
Relevos, destes e doutros – Entenda-se!
As outras (secretárias) quedam-se, calam-se
Quietas
Inconscientes da sua chateza
Lisas e brancas
A penas
Registam
Os recados!

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Adelina Maria Granado Andrês nasceu no norte do país e aí vive,  em vizinhança próxima com o mar de Gaia e, muitas vezes, no interior transmontano. O seu percurso académico desenvolveu-se no domínio das Ciências da Educação: licenciada e mestre pela Universidade do Porto, e doutorada e pós-doutorada pela Universidade do Minho. No domínio da investigação, os seus interesses focam-se, em especial, no pensamento e na obra de Agostinho da Silva – cujo conteúdo das “Conversas Vadias” constituiu o objeto de estudo da sua tese de doutoramento. É docente do ISCAP-P.Porto onde leciona na área das Ciências Sociais e Humanas, sendo, aí, membro do CEI (Centro de Estudos Interculturais), integrando, ainda, o CLLC (Centro de Línguas, Literaturas e Culturas) da Universidade de Aveiro, e é membro da Associação Agostinho da Silva. Para além do ensaio, dedica-se continuadamente a outros tipos de escrita, sendo autora de livros infantojuvenis e de outros de poesia e prosa poética.