SOBRE A FELICIDADE E O SEU REVERSO – por M. H. Restivo

 

Vários assuntos há que retornam às nossas mentes como coisa não resolvida que precisa de nova ponderação para que os corações se acalmem e a vida siga sendo o que é. Para os mais práticos, será coisa fútil voltar a reflexões que se arrastam há milénios e que, tanta tinta corrida, não reúnem ainda consensos. Mas outros há que, como eu, se põem a fazer contas à vida, querendo saber do lucro e do prejuízo de tamanha labuta. Quem assim procede não poderá deixar de usar a felicidade como parâmetro, pois, no fundo, não é isso que tem mais valor? Alguns acusar-me-ão de ser hedonista, mas defendo-me dizendo que felicidade e prazer não são a mesma coisa, a felicidade é um conceito mais complexo que não exclui a dor dos seus domínios. Já o prazer não contempla a dor, são duas realidades diferentes que, como bem disse Burke, têm a sua própria escala. E, no entanto, sendo difícil definir o que nos faz felizes, já se chegou a uma ideia sobre a felicidade — a medida dos homens para sopesar a vida.

Tomando a felicidade como medida para sopesar a vida, temo que muita gente fique em maus lençóis! Afinal, quem poderá ousar dizer-se feliz? Já diz o ditado A felicidade é como a sorte grande: só sai aos outros! Frase feita, e bem feita, diria, que, apesar de compreendida por todos, nos diz que a felicidade existe, mas ninguém a sente! Esta peculiaridade não é rara na sabedoria popular, que também afirma que A felicidade precisa de ser interrompida, para ser sentida. Mas se a felicidade é interrompida, como pode ela ser sentida? “Não tem lógica!”, dirão alguns, mas quantas vezes não se ouve a frase “eu era feliz e não sabia”? Os mais pessimistas concluirão que só existe infelicidade, ainda que diferentes graus de infelicidade, que quem assim se expressa passa de um estado de infelicidade moderada para um estado de infelicidade maior. Da minha parte, acho que há mais razoabilidade em ser-se pessimista do que otimista, não obstante, neste caso, a razão diz-me que se existe infelicidade, tem de existir o seu contrário, do mesmo modo que só há quente, porque há frio e vice-versa. E, repare-se, ainda não ouvi ninguém duvidar de que a infelicidade exista, donde se segue que a felicidade tem de existir!

Há aqueles que pensam que a felicidade é apenas uma questão mental, que depende do nosso pensamento e que podemos ser felizes se a nossa mente se decidir a tal. Também isso nos diz o provérbio A felicidade está onde nós a pomos, sugerindo-se que ela depende do modo como olhamos o mundo. Pobre seria a sabedoria popular se se contentasse em dizer tolices para consolar as gentes, que a verdadeira sabedoria está em dizer as verdades com um pouco de humor, e, assim, também se diz que A felicidade está onde nós a pomos, mas nós nunca a pomos onde nós estamos. Aos ingénuos que se deixam enganar pelos oportunistas, digo que o que nos acontece forma o nosso pensamento, não podendo o homem, com honestidade e humildade, achar que tem o poder de mandar naquilo que pensa. Também o pensamento tem as suas próprias leis que atuam aquém da consciência. Sendo as nossas vidas feitas de narrativas, e não apenas de sangue e vísceras, bem se pode tentar construir narrativas para dar sentido ao caos que nos governa. Por vezes, elas são bem sucedidas nos seus propósitos, mas se a realidade lhes faz frente, perecem, porque não passam de quimeras que pretendem justificar a existência. A sua força nada é sem a realidade e, de igual modo, o pensamento não cria a felicidade sem a ajuda do mundo.

Não se querendo pôr em causa o saber acumulado nas máximas aqui apresentadas, também não se considera de bom tom afirmar que nunca ninguém foi feliz! Se alguém duvidar disto, que duvide de mim também! Eu posso dizer, sem sombra de dúvida, que isso é falso, porque eu sou feliz. E aqueles que se lembram do quadrado da oposição de Aristóteles sabem que basta um caso particular para negar uma afirmação universal. Embora, em bom rigor, deva dizer que estou feliz e não que sou feliz, fazendo justiça ao fugidio estado de felicidade. A felicidade de hoje bem pode ser o infortúnio de amanhã, que a falta de um bem pode trazer muitos danos. Mas, se afirmo que sou feliz, não deveria ser capaz de dizer em que consiste a felicidade? Assim parece ser o caso, mas o facto é que não sei! Como é, então, possível, usar como medida algo tão impreciso e fugidio? Eu diria que, por estranho que pareça a muitos, é, sim, possível, pois muito se faz no mundo com ideias difusas, tanto para o bem como para o mal. E muito se faz com sentimentos que, muitas vezes, pouco devem à razão. Mas, se assim é, é inglório fazer-se contas à vida! A felicidade, enquanto sentimento feito de ideias difusas, não é medida segura para sopesar nada, muito menos a vida, parecendo que não há outra alternativa que não seja dar assentimento às afirmações dos mais práticos, que consideram coisa fútil voltar a reflexões que se arrastam há milénios, como se disse no início destas divagações. Chegados a este ponto, derrotados pela perspicácia da razão, não deveriam aqueles que, como eu, gostam de fazer contas à vida, deixar de lado tão disparatados propósitos? Ao que se responde que a razão é curta para o muito que a vida é, já isso dizia o poeta com mais hábeis palavras, e se a busca continua, mesmo após milénios, é porque, no processo, algo de bom isso traz aos homens. Seria absurdo que tanta reflexão, que não sai barata na luta pela sobrevivência, não trouxesse qualquer benefício, não é? A natureza não cometeria tal erro, pois não?

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M. H. Restivo nasceu em 1984 e vive no Porto. Licenciada em filosofia e em música, dedica-se ao ensino e a projetos de índole artística.