POEMAS DE JOAQUIM CESÁRIO DE MELLO

 

BOLINHOS FEITOS DE ONTEM E FEIJÃO

Miné na cozinha
faz bolinhos de feijão
enquanto minha mãe
conversa ao telefone
sobre a última moda do verão
A manhã vai passando
pelo céu das nuvens paradas
fatiada em diminutos segundos
pela fina lâmina dos ponteiros do relógio
feito a navalha gasta
no barbear matinal do meu pai

Lá fora a vida me espreita
no aguardo das perdas que um dia virão
e eu continuo absorto e distraído
assistindo o desenho animado
que está passando na televisão

Ainda não conheço a língua das ruas
o entrelaçar ardiloso das Moiras
o cheiro dos cravos e dos crisântemos
nem os caminhos que me levarão
para fora desta bolha azul de sabão

O princípio de mim vai se construindo
por debaixo da ingenuidade da carne
no pântano caudaloso da memória
e quando lá me olhar para trás
vou me ver sentado
assistindo desenho animado na televisão
quando Miné está na cozinha
fazendo saudosos bolinhos de feijão
e minha mãe conversando ao telefone
sobre a última moda daquele remoto esquecido verão

NO INTERIOR DO MAR DE MIM

No mar interior de mim
habitam ninfas aquáticas
sorridentes baleias rosadas
corvinas, robalos e linguados
e uma multidão de peixinhos listrados

No mar interior de mim
sereias encantadas
sobre a ossada dos rochedos
arrastam minhas lembranças
para o fundo secreto da alma

No mar interior de mim
navios naufragados
guardam tesouros não revelados
sobras de um menino nunca abandonado
que sabe nadar até debaixo d’água

No mar interior de mim
minhas praias estão sempre lotadas
fins de semana, dias úteis e feriados
por vulgos que por ali passam
deixando pegadas nos grãos da areia
que o vento do tempo um dia apaga

No mar interior de mim
a luz não alcança a fossa mais encovada
do meu mais profundo oceano
em que entre placas tectônicas
permanecem submersos e adormecidos
primitivos vulcões marítimos

No mar interior de mim
ondas espumadas de histórias
oscilam molhadas de memórias
onde por fora deslizo
como um surfista bronzeado
e por dentro navego
feito um submarino amarelo camuflado

No mar interior de mim
sou Robison Crusoé
sem Sexta-Feira

 

 O TAPETE PERSA

 Na casa da minha avó
existia um tapete mais velho do que ela

Diziam que era persa
e que fora herdado da mãe da mãe de sua mãe
que deve ter comprado em alguma quermesse
ou nas feiras beneficentes das remotas igrejas

Sobre o tapete da casa da minha avó
passeei com meus pequenos pés de infância
e pairei por cima de cidades que nunca vi
salvo na lucidez delirante do meu maravilhado menino

Na casa da minha avó
havia um tapete que era voador
onde amei flutuar de olhos fechados
junto ao algodão doce das nuvens
no céu dos anjos da infância

Dele não conheci seu paradeiro ou destino
apenas o tenho nos álbuns em preto e branco de fotografias
e no colorido pintando da memória
que nem as cores das guloseimas, dos dropes e das jujubas

O tapete da casa da minha avó
era mágico e eu não sabia

UM MINUTO ANTES DA NOITE

No cochilo das árvores
as folhas sonham ser flores
e a tarde passa por cima das copas
sem perturbar o sossego das folhagens

Nas ruas faróis se acendem
no diminuir da velocidade dos carros
enquanto nas calçadas pés alvoroçados
pisoteiam os segundos agitados
como se fossem bitucas de cigarros

Nas cinzas do queimar da tarde
sonhos buscam voltar às camas
ao mesmo tempo em que o sol se põe
expondo a noite que se escondia
por detrás do véu azulado do dia

Os postes madrugam mais cedo que os gatos
que nos cantos dos becos desalumiados
onde todos são encardidos e pardos
aguardam o regressar dos próximos ratos

Nos botequins da cidade
alguns alongam o sepultar das horas
retardando o reencontrar com o trinco das portas
que os separam das realidades das casas
e das sequidões apáticas dos quartos

Em um lugar neste instante
nem sempre assim tão distante
alguém se despede da vida
enquanto um outro amanhece e se cria
e os demais apenas esperam
depois das novelas e das preces
o cerrar solene das pálpebras
no apagar de mais um pedaço da vida
que acompanha o escapar transitório dos dias

♦♦♦

Joaquim Cesário de Mello, Psicólogo, psicoterapeuta, bacharel em Direito e professor universitário. Escritor e poeta, participou de várias antologias literárias nacionais e internacionais. Autor dos livros Dialética Terapeuta (2003), A Alma Humana (2018), A Psicologia nos Ditados Populares (2020), A Vida Como Um Espanto (2022), No Cemitério das Nuvens (2022), Memórias do Esquecimento (2023), Versos Achados por Aí (2023) e A Rosa dos Afetos (2024)