METAFÍSICA ENQUANTO A MORTE SE ATRASA
Os poetas estão dóceis.
Os mortos,
jazem, em placas, pelas esquinas,
dando nome aos chãos
do passar de cada dia;
os vivos,
amontoados entre a poeira e as traças,
mal respiram – ainda.
Que destino:
travar-se com a língua,
(o que é dizer com um corpo,
latente coisa)
munir-se até aos dentes com suas farpas;
lacerar a couraça em seus gumes,
espatifar a lira,
forjar outra matéria (ainda língua) depois de tudo,
e findar
dependurado ao alto
no triste afazer de nomear o onde
os homens
não se vêem, não se olham,
não se tocam
senão por trinta dinheiros!
[in Metal sem húmus]
O QUE SE DEIXA
I.
Teremos aprendido com os deuses
a deixar para trás
(somos nós, suas crias, prova disto).
Mas ao contrário dos deuses,
nossa casa mortal
(ossatura e memória)
não sabe deixar para trás
sem amar o que deixa.
II.
Tenho em crer que os deuses,
do alto de seu existir eterno,
são mais tristes que as crias
(sós) que deixaram para trás.
[in Escrevivências: livro de vidas imaginografadas]
EXORTAÇÃO AOS LOBOS
Trago uma alcateia renhida
a saltar-me dos olhos.
Mal sabe, quem os lobos vê,
há quanto estão mortos!
Por efeito de alguma
marejada água de sal doída,
creem numa miragem de feras
onde só há
uma inconsolada ferida.
[in Esta solidão aberta que trago no punho]
DOS PEDAÇOS DE DEUS QUE LARGUEI AO MAR
Um deus pode ser belo.
Mas um deus é só um deus:
mito e tempo,
dito e repetição.
Ao deus dos altares e do invisível,
o espedacei e larguei ao mar.
Guardo agora tão só
“o nome deste mundo dito por ele próprio”
[in Como cavalos fatigados abrindo um mar]
(Verso citado: Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra poética)
LIQUIDA-SE UM POETA
Liquida-se um poeta.
As estantes estão cheias
e é já tempo das novas ofertas.
Liquida-se um poeta.
Nem novo nem velho,
nenhuma marca de uso,
apenas do tempo:
alguma poeira sobre,
algumas marcas de oxidação,
algumas leves manchas,
mas nada que comprometa,
que avarie a integridade.
Liquida-se um poeta.
Um desses comuns,
sem mais pormenores.
Desses sem escola nem manifesto
(só seu doído haver é manifesto),
poeta de aldeia,
sem distinto sangue ou linhagem.
Um poeta das gentes do barro,
rústico,
sem as luzes magníficas das metrópoles,
sem as cenografias corporais dos holofotes,
sem a eloquência das etiquetas,
sem a pósneopoética dos midiáticos.
Liquida-se um poeta,
apenas.
Quem o leva?
Colaborem!
Facilitamos tudo! Custo simbólico!
Aproveitem a oportunidade!
Carecemos de espaço.
As estantes estão cheias
e é já tempo das novas ofertas:
biografias de new myths
(como o Evangelho segundo Messias Genocida),
vidas de digital influencers
(porque uma língua ditosa
diante do espelho em nudo corpo
vale mais que mil poetas),
guias de viagem a exotic people
(com dicas para o melhor aproveitamento
do olhar tristonho de criancinhas refugiadas
para selfies),
manuais de new poetic coaching
(Baixe no App e veja como é rápido e fácil!
Tudo só depende de você!
Parcelamos em até seis vezes no cartão.),
etc…
Liquida-se um poeta –
essa extemporânea coisa sentinte
sem (mais–) valia
nesse mundo liquidado.
[in Auto de incineração]
♦♦♦
DÉRCIO BRAÚNA (1979), Limoeiro do Norte (Ceará / Brasil) é bancário e historiador, doutor em história social pela Universidade Federal do Ceará, com estudos sobre as relações entre história e literatura. É autor de trezes livros individuais (poesia, conto, estudos e ensaios), além de participação em obras coletivas (poéticas e historiográficas). Suas obras mais recentes são os volumes de poesia Esta solidão aberta que trago no punho (semifinalista do Prêmio Oceanos 2020) e Auto de incineração (2021), os “exercícios barrocos” de Eu talvez desejasse matar poetas (2023) e o estudo historiográfico Tentações de sapateiro: o cerco da história na operação ficcional de José Saramago (2023).
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