Jama Masjid, a maior mesquita da India
A palavra viagem cria em mim o sonho qual Peter Pan em busca da Terra do Nunca.
Interiormente agita-se a ideia de organizar, de selecionar o importante de uma nação, lugares, próximos ou longínquos. O mapa, o atlas, livros informativos instalam-se na mesa de cabeceira em busca desse conhecimento de hábitos, tradições, gastronomia, língua; escritores ou artistas famosos. Enfim, proponho-me beber de todas as fontes, esbugalhar o olhar para ver para além do que todos os turistas vêm.
Preparo-me fisicamente, pois sei que quero caminhar, observar de perto, contactar, se possível.
Na preparação da viagem já existe novidade, encantamento, enamoramento que há-de servir para contornar qualquer contratempo. É um deleite prévio que corre o risco de incumprimento sem arrependimentos, como ocorreu ao chegar a Deli. O primeiro impacto foi intenso e sem internet tornou-se muito difícil, apesar de termos contratado um guia local que falava inglês e arranhava espanhol.
Ao preparar a viagem à Índia, já senti um pouco de estranheza a pensar nas comidas picantes, no conceito de vida e suas vivências. Tudo o que li foi importante, mas a presença, as explicações do guia, os rituais ao entrar nos templos, a forma de estar eram novidades fresquinhas:
— Por favor, entreguem-me os sapatos antes de entrarem no templo!
Estávamos em Jama Masjid, a maior Mesquita do país e um dos locais mais emblemáticos com a sua estrutura do século XVll, de uma tonalidade «avermelhada», situada no caos que define a cidade velha. Pode subir-se a uma das torres e ter uma vista panorâmica da cidade. O problema é o véu de poluição que a envolve.
Descalçar os sapatos, entregá-los a um indiano que os arrumou e ver que, à saída, lá estava ele, tranquilo, sorridente e pressuroso com os meus sapatos por entre uma imensa galeria de calçado. Que memória visual! Agradeci, enquanto retirava o lenço que colocara sobre os ombros nus para poder tocar numa imagem. Um gesto que simboliza longevidade que, de acordo com a quantidade de gente em aceder por entre uma multidão, todos procuramos.
Num passeio patrimonial pela velha Deli em riquexó as experiências são uma aventura. Há que sobreviver à multidão que inunda as ruas com compradores e vendedores de peças novas e usadas sob um nevoeiro de poluição atmosférica, a par da poluição sonora e o constante equilíbrio periclitante do veículo. De mãos dadas, cingidos nos assentos seguimos as explicações do guia ao nosso lado:
— É muito raro haver acidentes, estamos muito habituados a este caos.
–Como é possível viajarem cinco e seis pessoas numa mota?- questionou a Clara.
— Na Índia há esse hábito de levar a família toda e até o cão. Repare nos autocarros em que há gente no tejadilho, outros pendurados nas portas e todos pagam o mesmo valor.
–Este constante apitar é tão incomodativo!
— Clara, é a forma de saudação entre os condutores.
Pelas ruas, à entrada de um edifício, barbeiros e cabeleireiros a exercerem a sua atividade como se estivessem no melhor salão de Paris. Estranha-se e aceita-se, pois viajar significa também mergulhar em águas desconhecidas e procurar compreender.
Mais adiante, duas ou três pessoas a banharem-se na rua, ensaboados, a água a escorrer pelas ruas, enquanto outros esperam a sua vez.
— A vida faz-se muito na rua.
Estas palavras do guia tornaram-se reais ao ver a esquadra de polícia, uma casinha pequena, térrea, em que os polícias jogavam às cartas na rua, completamente despreocupados.
As comidas de rua e de restaurante eram consumidas como um festim dos sentidos: as cores, o paladar picante, o olfato inundado de odores inabituais, o pão nan seguro entre os dedos como garfo a carregar iguarias indianas.
Os animais, sobretudo as vacas passeiam-se nas ruas, o trânsito para, sem que nenhum transeunte ouse afastá-las. A escolha cabe-lhes e os indianos respeitam.
Ainda em Deli, a história da Índia revela-se nos templos, os museus, nos monumentos e no vestuário de diversas tribos. O turbante é colocado de acordo com o prestígio, a classe ou o nível social.
A cidade velha é uma zona frenética e popular, com ruas, ruelas de trânsito caótico, e com as atrações turísticas como o Red Fort e a Jama Masjid. É um mundo novo que se revela, encantando uns e desencantando outros.
–Isto é de loucos! Vou de olhos fechados, só vou abri-los no fim.
A Fátima, nossa companheira de viagem estava insegura. Confesso que eu também, mas decidida a usufruir de cheiros e coloridos existenciais diferentes.
–Fátima, viajar é aventurar-se. As outras cidades hão de ser menos caóticas—exclamei!
Descemos para visitar o Forte Vermelho, um conjunto monumental de fortificações exemplares da arquitetura indiana.
A visita a Qutab Minar acalmou a minha amiga. É o minarete mais alto do mundo, 72,5 metros, feito em tijolo, e ilustra a arquitetura indo-islâmica. Foi declarado património Mundial da Unesco em 1993.
Esta viagem é também interior, de interrogações, de perspetivas, de diversidade religiosa e pessoal:
aceitar colocar na testa umas marcas, de modo a entrar no templo purificada; ver consumir água do Ganges, completamente poluída e onde se purificam os mortos, em Varanasi. Trazem lenha para junto do rio, queimam ali os corpos que já estiveram na água envoltos em panos brancos. Conversei com elementos da família sobre os procedimentos e fui compreendendo a necessidade moral e religiosa daquela família na despedida do seu ente querido. Rostos serenos, à espera das cinzas que lançam ao rio e o paradoxo de considerarem aquela água purificadora, santificada. Bebem-na ali mesmo, outros levam-na em garrafas e garrafões e outros objetos para casa como alívio de dores ou prevenção da morte.
Contrastando com todo este cerimonial de luto, há passeios de barco no Ganges ao nascer do sol, que fazem esquecer o que se viu ao entardecer do dia anterior. A lembrar Veneza, os barcos conduzidos por um indiano seguem rio acima e o guia vai explicando que ao cair da noite há uma espécie de oração com vários religiosos, uma espécie de padres, um cerimonial interessante que durará uma hora.
— Alinhamos?
–Claro que sim, Zé
Num outro barco seguia uma família portuguesa. Estavam no nosso hotel por mais duas noites. Combinámos assistir às cerimónias depois do jantar.
— Não vou jantar, já sei que vou sentir-me mal.
— Fátima, queres ficar no hotel? Vou gravar e, se quiseres, vês só em Portugal.
A minha amiga concordou. Enviuvara há três anos e ainda não se sentia bem em celebrações que lhe lembrassem o luto e a perda. Os filhos do casal ficaram também no hotel. Havia um casamento no hotel do lado e aproveitariam para espreitar.
A Fátima propôs-se ver algo que a divertiria, estava cansada de Varanasi e das celebrações à volta do poluído Ganges e da conversa sobre Camões, dos Lusíadas, do canto sétimo, de Bocage a comparar-se a Camões num soneto em que fala do “Ganges sussurrante”, junto ao qual ambos sofreram. Não era suficiente lembrar-se do que estudara há anos e ainda a sua amiga de viagem a recitar esses poemas, a ela uma mulher da ciência. No dia seguinte seguiriam para Jaipur, a capital do Rajastão, a cidade rosa devido à cor dos edifícios. O guia já lhe falou na boa organização da cidade, algo pouco comum no país e no luxuoso Palácio da Cidade que visitarão. Leu algures sobre pedras preciosas que as lojas oferecem, bem como das especiarias multicolores e os tapetes feitos sob o olhar do turista.
Envolta nestes pensamentos foi acordada pela Maria e o irmão, Miguel de vinte e vinte e dois anos, elegantes, olhos negros, cabelo escuro, prontos para espreitarem o casamento da janela do quarto.
— Vou descer. Parece que eles não se importam que presenciemos a chegada do noivo e a receção da noiva.
— Ele vem de cavalo com um séquito atrás.
–Miguel, prefiro ver a noiva e as damas de honor, o colorido dos rostos e da roupa…
–Acalmem-se! Havemos de ver e filmar…
— Deve ser proibido ou então temos de pagar, pedem dinheiro por abrir a porta do hotel ou do carro.
–É um hábito que têm. Ontem tirei uma fotografia em Agra com umas indianas que quiseram ser fotografadas comigo e tive de lhes dar algum dinheiro. Não lhes interessa o valor, mas a simbologia.
Aproximaram-se da porta do hotel contíguo e o colorido do vestuário, a alegria dos convivas, as mesas junto à piscina exterior fizeram a alegria dos três intrusos.
–Sou a mãe da noiva. Podem aproximar-se. São portugueses, sou neta de um Minhoto que se rendeu aos encantos da minha avó.
Olga falou-lhe das castas, da religião, da duração dos festejos, de três a sete dias, de acordo com as finanças e castas de cada família.
— A cerimónia vai ocorrer naquela tenda grande chamada Mandap, decorada com flores e tecidos ricos. Ali os noivos e familiares vão receber os presentes como joias de ouro e pedras preciosas.
— Li que há rituais a seguir durante esse período de sete dias.
.—Sim. Este longo período de casamento engloba o seguinte: primeiro dia -rituais de pré-casamento, denominados Haldi, Mehendi e Sangeet, sendo Haldi a cerimónia da curcuma, ou seja, as mulheres da família oferecem aos noivos um banho dessa especiaria.
Mehendi é a aplicação de henna como tatuagens nos pés e mâos da noiva pelas amigas ou familiares e Sangeet significa música com danças e coreografias indianas em que as famílias dançam juntas.
No segundo dia faz-se o casamento religioso presidido por Pundit, um líder religioso. O terceiro dia é a receção e a festa . Há muita música , muita comida, com presentes que os convidados oferecem. É o momento de dar asas à alegria, é a festa profana. A playlist deve ser somente instrumental, de acordo com a tradição indiana.
— Obrigada, Olga, estamos encantados com todos estes esclarecimentos.
–Fatima e jovens, venham assistir de perto. São bem-vindos.
— Agradecemos o convite e a sua disponibilidade. Partimos amanhã para Jaipur, depois Bombaim e Goa. Não esqueceremos a beleza que envolve um casamento, as cores, os tecidos dourados, os brilhos, as lamparinas acesas e a presença incontornável das estátuas de Ganesha e Shiva e outros deuses hindus.
–Ganesha é um dos mais venerados deuses, temos muitos. Remove obstáculos, proporciona sucesso e fartura, mestre do intelecto, da sabedoria e chefe do exército celestial.
–Já reparei que está sempre à entrada dos templos.
— E de casas de hindus, Miguel!
Shiva é um dos deuses supremos do hinduísmo, conhecido como destruidor e regenerador da energia vital, é o benéfico, aquele que faz o bem. Diz-se ser o criador do Yoga pelo seu poder de transformar física e emocionalmente quem praticar aquela atividade.
–Olga, que esses deuses contribuam para uma vida longa e feliz dos noivos!
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Maria Leonilda Soares Videira da Fonseca Pereira, licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, ama as palavras.
Publicou Da Minha Janela, um livro de poesia a par de contos e poemas em coletâneas, revistas e redes sociais. A escrita e a leitura continuam a adoçar-lhe os dias.
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