Olokum
Que estranha forma de vida, essa
onde não te posso tocar
ou
enxugar as lágrimas de teu rosto
com meus cabelos,
meus infinitos cabelos
que tuas mãos aparavam na era da infância
sob a tesoura enferrujada.
Aquela tesoura sou eu, trêmula,
desfeita no espelho da carne.
Ciência
Afastar os monstros do quarto
requer ciência:
esconder-se pelo edredom
acender a lâmpada
tirá-los de sob a cama.
Há formas de afugentar os monstros,
inclusive aqueles do armário
que se mexem ao dormirmos
e nos olham baixinho
como fossem lentos fantasmas,
velhos de tanto limbo e provação.
Para arrancar os monstros é preciso ser capaz:
agarrá-los bem forte,
para que, no tormento do abraço,
rebentem de humanidade
e não voltem nunca mais.
♣♣♣
Decoro
mulher precisa ser limpa muito limpa mamãe dizia como se mulher já nascesse suja Liliam Sais
Feche as pernas
use esmalte claro
desça as escadas sem olhar pra baixo
pegue os talheres de fora pra dentro
eleve a postura
não fale alto:
tudo isso mãe ensinava
quando eu, mocinha, não aprendia.
Mamãe, de outra época,
achava revolucionário usar minissaia
e ir à boate sozinha
– mas sempre de pernas fechadas, postura ereta
e um rombo farto no pulmão.
Curioso mamãe ascender sem o ar que tanto procurei.
Até hoje acredito que mamãe foi revolucionária,
afinal, forjou-me na farpa das que comem areia sem pedir licença,
sem nutrir um só perdão.
♣♣♣
Do que é celestial
O meu poeta partiu um ano antes de eu vir ao mundo.
Acho que me preparava o campo
sabia que eu não aguentaria o leite derramado,
a praia, a Terra e suas tortas asas.
Muito sentimento há em mim.
Muito sentimento havia nele.
Meu poeta não viu meu corpo,
mas me conhece inteira.
Será que foi ele que me enviou?
Abro a retina do meu delírio
e o encontro sentado, pensando em Minas
ao derredor da minha cama.
Sua pele não existe, mas eu o vejo.
Não fui até hoje quem seria.
Meu poeta me viu outra pela última vez
em 1818, na gare de Viena.
Depois, só nos notamos de longe,
mas agora ele me visita.
À noite, quando penso em pular,
é ele quem está lá, à grade,
me olha
e segura a mão de minha mãe.
♦♦♦
Clarissa Macedo (Salvador/BA), doutora em Literatura e Cultura, é escritora, revisora, agente cultural, editora, pesquisadora e professora. Apresenta-se em eventos pelo Brasil e exterior. Integra coletâneas, revistas, blogs e sites. Publicou O trem vermelho que partiu das cinzas, Na pata do cavalo há sete abismos (Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia, traduzido ao espanhol — Espanha e Peru), O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição, A casa mais alta do teu coração (Prêmio Biblioteca do Paraná) e Missal ou o livro das falenas. Integrou o Circuito de Autores, do Sesc. É a idealizadora do Encontro de Autoras Baianas e do Sarau Cartografias. Edita a bangüê.
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