ELOGIO À EDUCAÇÃO FÍSICA – por António Camilo Cunha

Neste tempo de mudança faço aqui um elogio à Educação Física, em particular às ciências, ao conhecimento e às possibilidades educativas que ela contém.

A Educação Física é, antes de mais, uma forma de conhecimento. Uma fundura de pensamento, uma dúvida metódica, uma práxis que traduz o sentido mais alto de uma Ideia, de um Texto, de uma Obra.

A Educação Física faz parte da galeria dos clássicos sobre a condição humana. Os Gregos (o sentido da história) perceberam que o corpo e o movimento humano também se constituíam como atributos do pensamento e do discurso. Perceberam que o corpo e o movimento humano faziam parte da Obra Humana que ainda estava em Falta.

Uma Obra, nas palavras de Merleau-Ponty, nasce pela experiência da Falta; quando se responde a essa Falta, nasce a Obra.

Ela contém um critério essencialista (“uma alma”), um valor intrínseco, um núcleo central, uma força interior que se perpetua – o sentido da posteridade. Ao mesmo tempo, contém um critério do agir histórico, da ação concreta com brechas de fuga – de entradas e saídas – que permitem inúmeras significações a serem interpretadas, encontrando, depois, novos conceitos.

A Educação Física é um conceito recheado de múltiplos conceitos ainda não descobertos.

Quando nos detemos na Educação Física como uma forma de conhecimento (aspeto que anima esta reflexão) podemos dizer que ela se apresenta com um tríplice caráter:

I) O caráter da(s) ciência(s) naturais biologia, física, química, fisiologia, morfologia, saúde, biomecânica, ergonomia com o seu instrumentário empírico, positivo, exato, objetivo, quantitativo, matemático, prescritivo; com seus objetivos de rigor técnico/tático. Tudo isto, assente num método (científico) e num objeto (corpo/movimento) bem definido;

II) O caráter da(s) ciência(s) humana(s) – sociologia, antropologia, psicologia, tecnologia – com o seu instrumentário empírico, quantitativo/qualitativo, objetivo/subjetivo, interpretativo, crítico, reflexivo, contextual. Tudo isto, assente em métodos e objetos/sujeitos (corpos e movimentos) bem definidos;

III) O caráter filosófico que olha para o corpo e para o movimento humano quer nos seus fundamentos – ontológicos, metafísicos, lógicos, éticos, quer nas suas manifestações e expressões (em particular) fenomenológicas, semióticas, hermenêuticas e linguagem. A Filosofia além de ser um constante convite à reflexão – vontade de pensar, é também um estímulo à justiça e liberdade humana. A Educação Física é sobretudo um locus de justiça e liberdade, onde o sal da imaginação, da criação – uma poiesis, se fazem presentes e que, no caso da Educação (outro aspeto que anima este texto), tem implicações na complexidade dos quadros pedagógicos, didáticos e metodológicos no que toca às matérias curriculares (nucleares e alternativas) e dentro das várias atividades, quer nos cenários terra, ar, água, quer nos planos, natural, artificial e virtual.

O que eu gostava de aqui trazer é de facto o Elogio à Educação Física (nas palavras de Manuel Sérgio – A Educação Física é a mãe do Desporto), nomeadamente o elogio ao conhecimento oriundo das ciências humanas e do pensamento filosófico. Sabemos que a Educação Física, na modernidade, convocou a Ciência Positiva como forma de se legitimar académica e socialmente. Esse facto (ciência positiva), é hoje uma realidade predominante – na teoria, na prática, na investigação, na intervenção escolar e social/desportiva. Ora, este sentido, esta predominância é apenas um “tijolo” da Obra. A Grande Obra só pode ser realizada com as Ciências Humanas e com o Pensamento Filosófico – mais próximos da cultura, da história, dos valores, da identidade, da inclusão/integração, da participação política (direitos cívicos e éticos pela participação), da ação crítica e argumentativa, da ação ética/estética (sensibilidade do espírito). Mais próximas no dizer o humano, no dizer a Condição Humana, que resumo no poema de António Gedeão:  Lágrima de Preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

Uma lágrima não é só água (quase tudo) e cloreto de sódio. Não é só uma ciência exata – olhada pela química. Uma lágrima é (também) sentimento, sensibilidade, emoção, coração, afeto, relação, tão bem explicado pelas Ciências Humanas e pelo Pensamento Filosófico.

A Educação Física conhece bem os corpos de todas as cores, os movimentos em todas as suas manifestações, conhece bem todas as lágrimas, incluindo a Lágrima de Preta.

Educação Física… uma Obra!

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António Camilo Cunha , nasceu em 1966, na aldeia de Landim, Vila Nova de Famalicão. Desde cedo, a paixão pela “bola”, fez com que a infância fosse de muitos jogos e brincadeiras com as outras crianças da aldeia.  Em consonância, escolheu ser professor de educação física e desporto, dedicando-se em termos teóricos e práticos à formação de professores, às questões do corpo e do movimento humano, pelo olhar e inspiração das ciências exatas, humanas e do pensamento filosófico.