DO BOM USO DA LIBERDADE
I
O que fazemos, fazemo-lo na nossa circunstância, como bem observou Ortega y Gasset, e passou a ser muito repetido, só que, erradamente, no plural, e por vezes até julgando que Ortega é uma pessoa e Gasset uma outra. Coisas da nossa ignorância letrada…
Falemos, assim, de alguns constrangimentos, ou, se preferirmos, regras do jogo humano (social), ainda que possam algumas ser trans sociais.
Personagens tão diferentes como Montesquieu e Gobineau falaram, cada um à sua maneira, da importância do clima. Não é hoje uma moda, é realmente uma determinante essencial – para que muitos estão a acordar já tarde. Geoffrey Parker, autor de Global Crisis (Yale Univ. Press, 2013), em recente entrevista a “L’Histoire” (n.º 516, fev. 2014), profere esta frase lapidar: “é o clima que faz duma crise uma catástrofe”, assinalando importantes exemplos históricos que nos passaram despercebidos a todos. Se quisermos alargar a “circunstância” da radicação num lugar, recordemos o título eloquente de Yves Lacoste, A Geografia serve fundamentalmente para fazer a guerra.
Essa determinante das nossas vinculações ao lugar em que nos encontramos, desde logo com o clima que tem, é vital, e não será facilmente ultrapassável. Milagres são muito raros, e milagres globais mais complicados ainda…
Por outro lado, há condicionantes internas que se não nega poderem ter (ou ter tido) motivações exógenas, mas que fundamentalmente decorrem e dependem de cada “eu” pessoal.
É assim que a sede de saber, o altruísmo ou a vaidade são vetores de construção de vida (e de sociedade – note-se o elogio da vaidade como socialmente útil, em Matias Aires) muito determinantes e poderosos. Acrescentando-se e dialogando com as determinações e condicionantes: as geográficas, nomeadamente as climáticas, de que falámos, e muitas outras, de índole ambiental, físico, ou sociais, e até pessoais – desde logo as genéticas e constitucionais de cada pessoa.
II
É no plano jurídico que mais relevantemente se sentem estas dificuldades, que talvez sejam mesmo aporéticas. Mas que têm de ser ultrapassadas, ainda que, no limite, como teria feito Alexandre, o Grande, cortando o nó górdio. Não nos choquemos nem pensemos que o decorum jurídico se quebra: por alguma razão (simbólica, como as nossas) há deusas da Justiça com uma espada na mão, embora o símbolo mais comum e mais genuíno da Justiça não deixe de ser a balança.
Não me recordo qual é a obra literária, adaptada ao cinema a preto e branco, e que vi em criança na televisão, em que um calor demencial provoca comportamentos violentos e até criminosos em pessoas normais. Há também um filme de Alfred Hitchcock com essa temática. Mas, embora o policial seja de alta qualidade, como tudo o que era criado pelo grande cineasta, o outro é mais profundo. O primeiro filme eleva-se a um épico de uma suposta falta de livre-arbítrio, tanto quanto me pude aperceber.
Ora, independentemente de sabermos que há condicionantes das nossas decisões e atitudes, motivações exógenas e determinações endógenas, ainda sou dos que acreditam que somos livres, pelo menos até a um ponto suficiente para podermos ser responsáveis: suficientemente livres para poder evitar o mal e escolher o bem.
Tudo isto, numa lógica de opções mais ou menos simples, tal como antigamente era ensinado às crianças, desde logo na família, que não tinha abdicado de educar (e para isso tinha ainda tempo de convívio entre todos) e não endossava em princípio as responsabilidades para uma escola, que hoje acumula todas as funções básicas de sociabilização, com bastante dificuldade, carga para os docentes, e resultados nem sempre animadores (veja-se a criminalidade juvenil e o absentismo político, quando não – pior ainda – a sedução por soluções antidemocráticas, pelo mundo fora).
Há dilemas morais complicados, como o dos monges da Missão, de Ferreira de Castro, ou o do indigitado bombista n’Os Justos de Camus (entre tantos outros), e o clássico da virtude da Justiça, para Aristóteles: cometer uma injustiça ou sofrer uma injustiça? Mas, na maioria esmagadoríssima das situações, os comportamentos normativos, a inserção pacífica na sociedade, podendo ser difícil no concreto viver, todavia é claríssima na mente e no coração de quem tenha uma formação mínima no plano ético e cívico. Bastaria, se quisermos uma fórmula simples, o Decálogo, pouco mais ou pouco menos, para que uma pessoa não brigasse com a Lei. E para que a sociedade fosse não só mais justa, como mais livre e mais fraterna – que são os objetivos declarados no Preâmbulo da Constituição de 1976, vigente entre nós.
Para alguns poderá ser ainda um tanto surpreendente este fenómeno (banalizado pelo hábito para outros), que a comunicação social (mais uma que outra) diariamente nos comunica em sons agudos, de haver tanto crime, desde os crimes violentos (da violência doméstica à que ocorre em festas, entre vizinhos, ou associada a roubos, por exemplo), a par de grandes casos de corrupção, e de grande tomo.
Temos observado que uma coisa é o clima de medo que se está a instalar, com o agigantamento desses crimes todos, e outra coisa são as estatísticas, que nos revelam um país dos mais seguros do mundo (as avaliações estimam que estaremos entre o 3.º lugar para alguns, ou, para os mais pessimistas, no 7.º). A perceção que há da insegurança, e da quebra das regras mais elementares de convivência, parece ir muito para além do real. Criando um novo facto social. E evidentemente preocupante.
De qualquer modo, parece haver (mas disso haverá estatísticas?), isso sim, um crescendo de uma outra associabilidade, cujo cair ou não cair no grande fosso dos delitos, pode ser, em alguns casos, de fronteira. O atendimento antipático e maldisposto não é crime em si, mas é uma dessas pancadas quotidianas que moem, ainda que não matem imediatamente. Porém, doem muitas vezes, repetidamente, a quem não for insensível. Mas há pior: há a desatenção, o descaso, e mesmo o que se abeira do insultuoso, sem ainda o ser propriamente (porque, sendo-o, já seria delituoso).
Quando se fala com pessoas que, em várias profissões, estão no atendimento ao público, queixam-se imensamente da grosseria e da reclamação permanente, sem razão. O vice-versa também existe… O que nos deixa com a sensação de que devemos perguntar pelo país de brandos costumes, amável e razoavelmente alegre, que eram cores com que nos pintavam, e alguns de nós nos pintávamos assim também.
Mais que as questões de saber sobre “quem manda”, que é assunto importante, mas não deveria, em democracia consolidada, ser uma tragédia (funcionando um normal rotativismo entre duas ou mais soluções, igualmente democráticas e constitucionais), está a questão da chamada “democracia civil”. E, mesmo antes desta, e pressupondo-se como seu pano de fundo, estão duas ordens de vetores sociopsicológicos que a governação pode, é certo, ir ajudando ou prejudicando, mas cuja solução, ou melhoramento, reside essencialmente nas pessoas comuns, nos cidadãos anónimos.
A primeira questão é, realmente, o bom uso da nossa liberdade, no mais radical que ela tem, que é a dimensão do livre arbítrio. Aí, entra, como vimos, o problema da educação (e da autoeducação) para valores e virtudes, uma ética republicana ou pública. Em suma: a sociedade será intrinsecamente, estruturalmente, muito melhor se cada um se olhar ao espelho e protestar fazer-se uma pessoa melhor, idealmente a melhor versão de si próprio. Não pelo embelezamento, ou enriquecimento ou subida na vida – que são coisas adventícias e algumas com custos eventualmente elevadíssimos, até morais. Simplesmente pelo cumprimento dos deveres e pelo exercício dos direitos. Mesmo em condições sociais muito débeis sempre tem havido quem às dificuldades consiga transcender, trabalhando, estudando, divertindo-se de forma enriquecedora, não perdendo tempo, não se lamuriando sem fim, nem cometendo crimes.
A segunda questão é uma valorização, “upgrade” ou “plus” a acrescentar à primeira. Trata-se de não apenas se ser um cidadão não criminoso, mas laborioso, e ainda também participativo, interessado, socialmente ativo, solidário, fraterno, capaz de encontrar felicidade na sua vida comum (sem aspirar a ser um nababo) e alegria na família, no convívio, na cultura, na arte, no desporto, no próprio trabalho (é imensa a insatisfação laboral, o que é um sinal de alarme: mesmo em profissões outrora valorizadas que se degradaram e se tornaram reinos de burocracia, intriga e inveja). O sentido de humor é uma sensitiva ou barómetro desta capacidade. Há humor bem-disposto e luminoso, e humor verrinoso, sombrio, que denota males sociais a exigir atentos cuidados.
Recapitulemos: creio que com todas as ameaças ainda somos livres e espero que ainda vamos a tempo de conservar o planeta habitável, depois de tanta predação e incúria, e mesmo do negacionismo persistente de alguns.
O grande desígnio universal parece ser duplo: tratar da Natureza e assegurar e aprofundar a Justiça (designadamente a justiça social) entre as pessoas. Essa uma proposta de Humanidade, de Humanização, de Humanismo, universalista, e que implica o exercício consciente e ativo de uma Democracia Civil. Independentemente da necessidade inegável de outros macroprojectos, os quais transcendem o cidadão individualmente considerado. Ao menos ao nível do que depende mais de cada pessoa, ao menos a esse nível se pode e se deve agir. Em todos os domínios, não há álibis para cruzar os braços, aspirar a benesses e dizer sempre mal, apontando alegados erros de quem se arrisca.
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Paulo Ferreira da Cunha cursou as Faculdades de Belas Artes e de Letras da Univ. do Porto, onde chegou a Catedrático da Faculdade de Direito. Doutor de Coimbra e Paris e Pós-Doutor da USP. É Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Portugal. Publicou vários livros de poesia, ficção e ensaio, tendo ganho um Prémio Jabuti.
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