EÇA DE QUEIROZ NO PANTEÃO?
SIM, MAS COM UMA CONDIÇÃO…
“Ao rei tudo, menos a honra”
Calderón de la Barca
I – Eça de Queiroz. A exemplaridade da sua vida, a excelência da sua obra, a modernidade da sua herança cultural, artística, intelectual merecem ser (bem) lembradas, são credoras de reiterados tributos. Como, por exemplo, a projeção num ecrã de ‘O Mandarim’, a montagem num palco de ‘A Capital’, a publicação de um ensaio crítico sobre ‘A Relíquia’. O que este insigne autor de dimensão universal não merece, de certeza, é “ver” seu “descanse em paz”perturbado, ter suas (prezável) memória e (impoluta) honorabilidade molestadas pelo viés da vendeta, da armação, da instrumentalização típicas da (baixa) política. Distorções que denunciou, deplorou, até execrou, com estóica têmpera e fértil poder fabulatório, seja enquanto inspirado ficcionista e talentoso romancista, seja enquanto incisivo cronista e aquilino publicista.
II- Então, concretamente, o que está acontecendo? Nos últimos dois anos, o cidadão José Maria de Eça de Queiroz tem tido inusitada difusão nos mass media.. Bem-vinda e melhor acolhida seria ela se nos trouxesse a notícia alvissareira de uma mais ampla e eficaz divulgação da sua superlativa e cada vez mais atual, pertinente e atraente opera omnia. Como testemunho dessa atração, revele-se que numa entrevista, o poeta Jorge Luís Borges referiu que tal como ele, sua mãe lia, prazerosa, os romances queirosianos. Triangulando com Luís de Camões e Fernando Pessoa, o nosso estimado Zé Maria se nobiilita como uma antena da raça humana. Apostamos que Erza Pound estará de acordo.
O enredo desse mediatismo atingiu o primeiro clímax a 21 de janeiro de 2021. Nesse dia invernoso, a Assembleia da República aprovava, por unanimidade, a resolução 55/2021, que tem como escopo conceder honras de Panteão Nacional ao arquiteto d’ A Ilustre Casa de Ramires’. A proposta tem o timbre do Grupo Parlamentar do PS, sensibilizado para a pertinência da honraria pelo deputado José Luís Carneiro, atuando em sintonia com a direção da Fundação Eça de Queiroz-Casa de Tormes, liderada por um trineto do escritor. Contemplando o direito de sangue, os 22 bisnetos foram instados a se pronunciar. Treze manifestaram apoio à trasladação, seis se opuseram e três se abstiveram.
Em sequência, o quarto(!!!) funeral deste imortal de reputação ilibada esteve agendado para o dia 27 de setembro p.p.. Lépidos, os acácios e os abranhos já estavam alargando as fatiotas ou comprando farpela nova. Um cortejo sem pejo. Eis que, alegando haver anomalias técnicas no processo, a “oposição” familiar impetrou uma providência cautelar. “A fundação não tem poder de representração da família e nos apresentou a proposta como “facto consumado”, após negociação com o deputado, ex-presidente da Câmara de Baião. O cadáver do nosso bisavô não é uma sociedade por quotas”, alfineta, veemente, António Eça de Queiroz. Detalhando as objeções, realça que a filosofia de vida de Eça está nos antípodas da famígera resolução . “Se esta farsa se consumar, será um insulto à sua memória”, alerta o bisneto, incisivo cronista.
III- Perante o unanimismo obtido na AR, perante a maioria alcançada no seio dos descendentes, a democraticidade do processo aparenta ser incontestável. Convém lembrar, todavia, que uma deliberação democrática não se legaliza e não se legitima somente no amparo de votações, por mais majoritárias que sejam. No caso em apreço, o diploma estará isento de tortuosidades inconstitucionais, ainda que tanja a cláusula pétrea da Carta Magna atinente aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Similar normalidade não se vivencia no domínio da legitimidade ética, moral, cívica, civilizacional. Uma decisão política como a vertente tem notório défice de legitimidade. Denota desrespeitar a dignidade humana do homenageado, subestima a biografia do cidadão, parecendo desentender o conteúdo e as mensagens de seu espólio artístico-literário. Desconsidera, além de tudo, suas idiossincrasias pessoais, sua filosofia de vida, seus contextos culturais, seus hábitos morigerados, seus valores espirituais, seus estados de alma, suas perplexidades existenciais, seu ideário político-ideológico.
Convirá, assim, evitar que uma ilegitimidade se imponha e perpetue. Precaver que sob o manto diáfano de uma honraria da Pátria, se dissimule a iconoclastia da profanação de uma (boa) memória e se alardeie a desfaçatez do desdouro de uma vida coerente, íntegra e consequente. O bom consenso deve ter como irmão siamês o bom senso. Este binômio não se corporizou no hemiciclo de S. Bento. Envolvido no fumo do incenso, esse consenso não passa de filho único da insensatez e da insensibilidade.
Aquelas virtudes demonstraram ter, em 1989, o presidente da República. Sabendo da exumação dos restos imortais de Eça no Cemitério do Alto de S. João, em Lisboa, ele sugeriu a trasladação para o panteão. Agradecendo a distinção, as netas foram categóricas. Ele será inumado no cemitério de Santa Cruz do Douro. Ensejo para que o construtor de ‘A Cidade e as Serras” reeditasse a arte do encontro com sua amada Tormes. E Mário Sores acatou com serena lhaneza a (boa) vontade dos descendentes.
IV – A ignorância é muito atrevida, alerta a sabedoria popular. Além de usarem de mau senso, de insensatez, de insensibilidade, os parlamentares abusam no desentendimento da ópera do bárbaro prosador. Na sua maioria, eles terão tido um convívio apenas epidérmico com ela, lendo, coagidos na escola, no máximo, umas sem páginas (sem, não tem gralha aqui). E bastaria que tivessem lido umas cem páginas de ‘O Conde Abranhos’ ou de ‘O Primo Basílio’ para, sendo judiciosos, descartarem ab initio tão necrófila obsessão.. Diante de seus olhos se evidenciaria que Eça de Queiroz não daria agrément à compelida mudança de morada, sob pena de renegar, desmentir, invalidar as concepções, as opiniões sobre a fauna política. Embora, este seja um raciocínio especulativo, seria surpreendente que, alterando e adulterando suas ideias sobre o ecossistema político, concordasse em ser armazenado por toda a eterna idade, num bafiento, soturno e desengraciado edifício, erguido na ainda centralista e macrocéfala Lisboa. Com a agravante de ser um templo religioso, quando é sabido que o reto ciadão foi um livre pensador, um agnóstico, descrente da religião, por muito que admirasse Jesus de Nazaré (‘O Suave Milagre’). Se a trasladação se realizar, o conspícuo Eça será forçado a coabitar com vizinhos nada recomendáveis, da laia de um Sidónio Pais e de um Óscar Carmona, militares – políticos golpistas e antidemocráticos. Enfim, a presepada não tem atos, tem desacatos. E o que mais espanta é ter como autor um Carneiro vizinho de Tormes… Pelo contrário, se ao lerem seus escritos, o entenderam, pior ainda. Tem jogo perigoso nesse lance “paralamentar”.
Quem ora lê este arrazoado, conhece, certamente, tanto ou até mais do que nós, o (mau) conceito reputacional expresso por Eça acerca da natureza e comportamento de políticos grávidos de empáfia, prenhes de prosápia, inchados de húbris, odres repletos de sonsice. Façanhas e tropelias, boçalidades e venalidades que flechou certeiro, setas embebidas em ironia, sarcasmo, mordácia e humor, disparadas de uma pena afiada e ferina. Por esse motivo, não vamos chover no molhado. O modo mais genuíno de honrar o nome, a memória e a herança deste egrégio avô será ler e estudar seus livros. Translação em vez de trasladação. Eis o caso emblemático de Erich von Stroheim, gênio banido de Hollywood. Ele leu ‘O Primo Basílio’ e ficou tão fascinado que cogitou adaptá-lo ao ecrã. A morte malogrou essa intenção.
V- A liminar do Supremo Tribunal Administrativo acendeu o sinal amarelo ao recurso dos bisnetos. Aguarda-se agora a decisão final. Que os ministros tenham benzina à mão de semear. A demissão do Governo e a dissolução da AR deixa o dossiê em banho-maria, quando não, no congelador. Estime-se que o tribunal faça Direito e não reitere a dura lex.
Nesse ínterim, a ‘Athena’ não se omite nem se demite de ter uma opinião e uma posição. Opinião contrária à trasladação… para Lisboa e uma posição proativa, em busca de uma solução de compromisso. Em falação, a maioria dos deputados é paladina da regionalização.. Se forem coerentes, na certa apoiarão a construção de uma sucursal do Panteão Nacional, em Santa Cruz do Douro. Revele-se que não seria uma situação inédita. Em contrapartida, o notável intelectual seria memorado no Panteão lisboeta com um cenotáfio. Eis as nossas condições para se gerar uma alternativa.
Como vibração final, expressamos a ideia de que apartá-lo de Tormes seria um crime de lesa memória mais condenável que o do Pe. Amaro. Se Deus criou o universo, José Maria criou Tormes. Ele não pode ser banido do (seu) Éden, expulso do (seu) Paraíso…
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Danyel Guerra (aka Dannj Guerra) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História pela FLUP. E tem-se dedicado ao estudo da História do Cinema. Após ter lecionado História no Ensino Secundário, transitou para o Jornalismo, trabalhando como repórter e redator efetivo (Carteira Profissional nº 803) nos diários Notícias da Tarde, Jornal de Notícias e Correio da Manhã. É o colaborador mais regular da Revista Athena.
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