O limiar das fendas
e como eu caminhasse
por aqueles pátios líquidos
de violência falada,
algo inesperado se via:
a fenda é o espaço
estreito no qual o fio
morte e vida termina.
a fenda é onde a luz
surge como lamparina
em oceano inexplorado.
dentro dela, recolhidos,
há enormes navegantes
com seus braços em desuso.
observam a imensidão
das águas, do céu, da alma
recostadas a mil vãos.
no submundo de feridas,
a ventania os obriga
ao abraço retilíneo.
não se cansam, porém,
de a cada jogada nova,
amontoarem-se todos:
há de se acreditar
no monte de vida que,
justo, romperá o limbo.
o boi de um olho só,
carcomido pela nau,
anda com suas pegadas
na areia da praia vazia.
A sua ornamentação
agora o confunde todo,
já que de seu continente
deixa-se cair o medo.
O boi de três patas só,
aniquilada por pólvora,
caminha mancando, pálido,
em busca de um repouso.
E não sabe, o bicho-base,
que custará mais uma pata
andante para que possa
desfrutar de tais idílios.
♣♣♣
orar são
pai nosso que estais no céu,
tá osso
rogai por meus filhos
que sentem fome e frio
nem é preciso vir até nós
com todo o reino,
mas que seja feita,
só nessa época de vazante,
a vossa vontade,
assim na terra
como nos rios e igarapés
a macaxeira nos dai hoje,
perdoai as nossas descrenças
assim como a gente perdoa
o josé ladrão de bananeira
que me tem ofendido na igreja
e nos livrai de toda miséria
amém
♣♣♣
Poema de cinco faces
Quando nasci, um anjo padrão
desses de Instagram
disse: vai, mona! ser oprimida na vida.
As casas espiam os pais
que correm atrás dos filhos
antes de expulsá-los:
esse é o fato.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu poderia morrer
se sabias que poderia ser morto.
Mundo mundo vasto mundo
se eu não fosse bicha,
qual seria a revolução?
Eu não devia te dizer
mas esse chão
essa Like a Virgin
botam a gente vivo como o diabo.
♦♦♦
Douglas Laurindo é professor de língua portuguesa, escreve, edita e se dedica à pesquisa. É autor de O limiar das fendas (Urutau, 2022).
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