OS INTELECTUAIS- por A. Sarmento Manso

 

Cursos e percursos dos (pseudo)intelectuais

O que é e como se faz um intelectual? Os dicionários da língua portuguesa com mais ou menos palavras apresentam o intelectual como alguém que trabalha em actividades que requerem o intelecto: um indivíduo que mostra interesse pelas coisas culturais, literatura, poesia, cinema, artes plásticas, teatro… O intelectual quase sempre se (auto)apresenta como um ser à parte do vulgo. Faz questão de se exibir de forma andrajosa e de frequentar os lugares que se acredita ressumarem de cultura onde se faz logo notado. Passeia-se nas exposições que estão na moda, frequenta os bares mais concorridos, anda com os livros acabados de publicar. Absorvido no mundo da cultura, facilmente esquece a multidão que o rodeia e os problemas que a preocupam. O intelectual pelas nossas terras tende a imitar quer no visual quer no comportamento aqueles que escolheu como seus mentores e porque teve a sorte e a felicidade de estudar e frequentar outros países, diz mal do povo onde nasceu, na exata medida que rende inteira vassalagem ao que de fora lhe vai chegando ou ao que lá fora vai buscando.

 

Como surge então o intelectual? Um médico, um engenheiro, um economista, um advogado, um professor, mesmo que tenha ganho uns tantos prémios da especialidade, é com certeza considerado inteligente, mas se não mostrar apreciar a componente humanística e artística, não será reconhecido como intelectual, pois a educação escolar e a profissão, só por si, não garantem tal estatuto. Há reconhecidos intelectuais que nasceram em berço de ouro, como também os há que desde sempre viveram à margem da sociedade. Intelectual é aquele que tem gosto em aprender coisas novas e variadas, e face à diversidade daquilo que povoa a existência, não se contenta com um mero relato de conhecimento feito, procurando, incessantemente, a unidade numa realidade fragmentada, exigindo de si mesmo um esforço para ir saciando todos os sentidos. Daí o interesse que demonstra pelas artes e ciência, filosofia, poesia, literatura e também pela vadiagem. Em quase todos os intelectuais há uma certa repulsa ao ensino oficial pois este apenas aproveita o intelecto para fazer decorar ideias feitas e saberes construídos, não deixando que cada qual interaja livremente com o meio: inculca um saber racional, fragmentado, feito à medida dos iguais, que na verdade prejudica os diferentes.

Nos tempos que correm poder-se-ia pensar que se torna mais fácil ser-se intelectual. A informação não falta, viajar por todo o mundo tornou-se acessível e pela tecnologia nem sequer é preciso sair de casa para ter acesso aos maiores lugares de cultura do mundo. A edição de livros e música nunca conheceu uma expansão tão grande nem nunca teve tanta facilidade de publicação e circulação. Nos meios electrónicos abundam os blogs onde cada um discorre livremente sobre aquilo que mais lhe interessa. Na atualidade o intelectual comporta-se como as modelos que desfilam na passerelle a quem assenta todo o tipo de roupa mas que quase todos desejam ver sem nenhuma. Em termos de cinema, literatura, poesia, artes plásticas, nada lhe interessa do passado, fixando-se nas vanguardas que na sua maioria, nem são boas nem sabem o que estão a fazer. A exigência da escrita foi vencida pela técnica folhetinesca da história fácil irrigada com cenas escaldantes de sexo e violência. A Bíblia, Platão, Boccacio, Pe António Vieira, Cervantes, Dostoievski, Tolstoi, Proust, James Joyce, e tantos outros, escrevem bem, mas a sua leitura exige tempo e atenção. Entre nós, os poetas e literatos lêem-se uns aos outros auto-elogiando a mediocridade, no desconhecimento quase total de Homero e Hesíodo, Dante e Petrarca, Shakespeare e Goethe. Quando muito, os mais preocupados passaram os olhos e ficaram impressionados com os designados poetas malditos, Baudelaire, Rimbaud, Verlaine… e pouco mais… ou nada mais. Os prémios literários, poéticos e artísticos, a par dos galardões académicos que por cá vai havendo, contam nos elementos do júri com os compinchas habituais: em uma parte deles estão os intelectuais que atribuem as menções aos amigos do costume, aqueles que haverão de estar em júris semelhantes para lhes retribuir o favor. Escolhem-se uns aos outros e a si mesmos, permeando-se à vez, independentemente da qualidade e mérito. Seguem, assim, as pisadas do mundo dos reality shows que tanto abominam, onde o que interessa é contar a experiência individual, fixando o suposto sucesso em livro de autor mesmo que o protagonista pouca criatividade evidencie. Uns escrevem os textos, outros prefaciam, posfaciam, comentam, ilustram… E o povo que mal ganha para comer e que podia empregar as suas parcas economias na aquisição para leitura de uma obra substancial (porque não um clássico) paga quase sempre um preço exagerado por um produto medíocre, sustentando assim (e bem) o circuito da intelectualidade. Círculo este a que assenta bem a crítica que Aristófanes faz em As nuvens (mesmo que injusta em relação aos visados, porque esses eram os outros, os sofistas e não Sócrates e aqueles que o ouviam): “ao frontistério ou pensadouro dos espíritos sábios que a troco de dinheiro ensinam as pessoas a pensar bem”.

Automarginalizados uns, autoglorificados outros, assim se vão afirmando os intelectuais da atualidade. Os primeiros quase nunca vêm o seu valor (que na sua opinião é enorme) reconhecido; os segundos, fruto do sucesso fácil que adquiriram apresentam-se em público como uma espécie de demiurgos de uma qualquer divindade e enquanto os mantiverem na moda hão-de pavonear a falta de talento pelos programas de maior audiência. Em todos os tempos e em todos os lugares houve os autoproclamados intelectuais que com pouco talento e muita manha foram impondo uma criação medíocre que os fazedores de opinião rotulavam de grande qualidade, mas mais tarde ou mais cedo a qualidade acaba por se impor e os produtos de sucesso fácil são remetidos para o obscurantismo de que nunca deviam ter saído.

O ato criativo é solitário e desgastante porque confronta o criador com o produto da sua criação que na intuição tem origem e pelo instinto se apresentará como obra acabada. Paradoxalmente, estes momentos demorados e angustiantes de solidão fazem com que os criadores (os sérios criadores) atinjam o pleno das suas capacidades. Não se trata de uma afirmação pelo protesto, mas sim de uma exaltação da excelência. O trabalho criativo é parecido ao divertimento das crianças que fazem, desfazem e refazem, vezes sem conta as simples configurações de um pequeníssimo corte do real que lhes é próximo. Sem pressa e sem noção do tempo, de forma desorganizada, não desistem de procurar uma ordem própria para as pequenas configurações com que se ocupam, alheias à falta de sentido ou ausência de significações. O primeiro dever do intelectual é a honestidade. Se é bom naquilo que faz, só pode ser modesto quanto ao sucesso que vai adquirindo, uma vez que, como refere Novalis, “o chão é pobre, precisamos espalhar ricas sementes para que nos medrem colheitas apenas módicas”. Ter a obra muito procurada não é, por si só, sinónimo de qualidade. O sucesso rápido quase sempre corresponde a um esquecimento precoce pois o que puder perdurar tem de ter tempo de ser bem joeirado, de ser acariciado no seu desenvolvimento. Os melhores frutos são os mais bem cuidados, onde a paciência se instala e a espera não desespera, uma vez que, como lembra George Orwel “é preciso algum esforço par ver o óbvio”.

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A. Sarmento Manso, nasceu nos idos de 1964, pelo outono, ao cair das folhas, na aldeia transmontana de Izeda. Ao longo de mais de meio século de existência tem-se dedicado à aprendizagem de pequenas coisas, do lugar que nos pode caber no mundo e de como a beleza nos haverá de tranquilizar.