Pobres e ricos sofrem de igual modo o impacto das mudanças climáticas?
Enquanto escrevo este texto, chefes de estado e de governo de todo o mundo reúnem-se, no Egito, em mais uma conferência mundial sobre alterações climáticas. Uma das propostas em análise centra-se na criação de um fundo internacional que vise ajudar os países mais pobres a lidar com as perdas causadas pelos eventos meteorológicos e climáticos extremos. Esta questão é crucial.
Com efeito, embora se espere que os efeitos perversos causados pelo aquecimento global antropogénico e pelas alterações climáticas, por este causado, venham a impactar em todos os seres humanos, sabemos que estes serão especialmente nefastos para os povos mais pobres bem como para as classes mais desfavorecidas dos países mais ricos. Isto assim acontece na medida em que o ser humano goza de uma certa capacidade de adaptação a estes fenómenos, sendo que a mesma apresenta um preço que nem todos podem pagar. O impacto das cheias poderá vir a ser mitigado, se se construírem barragens. O mesmo com as secas, se houver investimento em centrais de dessalinização. Sabe-se, por exemplo, que os furacões causam danos muito mais intensos e números de perda de vidas mais significativos, quando se abatem sobre zonas pobres, onde as construções são mais débeis. São inúmeros os exemplos. Desconheço se o fundo que está a ser discutido na COP27 se prende, exclusivamente, com a ajuda ao salvamento e à reconstrução, necessária após desastres, ou se também contempla a preparação dos países para os mesmos. Se a lógica predominante for a primeira, penso que se cometerá um erro. Não nos esqueçamos do provérbio “o barato sai caro”. Com efeito, julgo que é crítico que se faça investimento na prevenção. Acredito que os governos mundiais começam a acordar para o novo mundo que nos espera mas, ainda, com alguma lentidão. Creio mesmo que a ONU deveria incentivar, publicamente, todos os governos do mundo a criarem, já, um ministério apenas dedicado ao fenómeno das alterações climáticas. Caberia a esse ministério duas missões fundamentais: a de traçar o plano nacional que orientaria o país em questão rumo à neutralidade carbónica e a de identificar as áreas onde, em cada estado, se verificam as maiores vulnerabilidades ao fenómeno do aquecimento global, para, de seguida, poderem ser estudadas as necessárias medidas de aumento da resiliência.
Defendo que os países mais ricos têm o dever de ajudar os mais pobres a implementar essa estratégia de aumento da resiliência. Tal como foi, por muitos, já referido, trata-se de uma questão de justiça, dado que a contribuição da generalidade das nações mais pobres para o aumento dos gases causadores do efeito de estufa foi, e é, marginal. Para além de uma questão de justiça, é ainda a aposta estratégica certa, pois mostra ser a mais capaz de preservar a estabilidade e a paz mundiais. Não tenhamos dúvidas de que, se os efeitos catastróficos das alterações climáticas se abaterem com toda a sua força junto dos povos mais pobres, os mais ricos também irão sofrer. Estou certo de que, em tais circunstâncias, não haverá muros suficientemente altos nem mares suficientemente vastos capazes de deter as dezenas ou centenas de milhares de refugiados climáticos que se precipitarão para os países mais ricos. Defendo que a solidariedade deve valer por si mesma mas, de igual modo, necessita de ser apreciada numa lógica instrumental – acredito, por exemplo, na necessidade de haver um estado social forte, não só por uma questão de justiça e de humanidade, mas porque as consequências da existência de uma parcela pobre e marginalizada da sociedade acabam, invariavelmente, através de problemas de criminalidade, saúde pública, entre outros, por se abater sobre o conjunto da mesma.
Deste modo, não deve oferecer nenhuma dúvida a ideia de que, de facto, estamos todos num mesmo barco que é o nosso planeta e que, ou todos nos salvamos, ou ninguém se salvará. Estas podem parecer palavras bonitas e vazias de discurso de miss universo, mas não. Algo que, de igual modo, se mostrará muito útil é o esforço de união dos povos. Com efeito, tudo se tornará mais fácil (sendo que, neste contexto de adversidade, nada será verdadeiramente fácil), se os países, progressivamente, procurarem a via do multilateralismo. Não haja dúvidas sobre o facto de que os grandes problemas do mundo (e o do aquecimento global é, provavelmente, o maior) são muito mais eficazmente combatidos, num cenário de cooperação.
É por isso que vejo com grande alegria e esperança o caminho que tem vindo a ser trilhado pela União Africana (UA). Esta organização política tenta replicar o exemplo da União Europeia. Para já, tem atingido marcos assinaláveis. Com efeito, é notório o aumento, junto dos países africanos, da importância desta organização e o modo como, cada vez mais, estes tentam resolver os seus problemas numa lógica de partilha de poder e de responsabilidades. Estou convencido de que, cada vez mais, esta instituição política será uma pedra basilar na resolução dos problemas de África, e, por conseguinte, do mundo. Acredito, ainda, que deveria servir de exemplo para outras latitudes e longitudes mundiais. Muito teria a ganhar a Ásia, se pudesse beneficiar de estrutura semelhante, assim como a América Latina, cujo Mercosul, me parece, está em coma, há muito (provavelmente e em grande medida, porque nasceu imbuído de um espírito excessivamente mercantilista).
Penso que será benéfico o incremento do diálogo entre a ONU e esta organização política transnacional. Parece-me que todos terão a ganhar, se o diálogo, paulatinamente, vier a migrar de um registo “ONU-estado africano” para um “ONU-UA”. A ONU deve, através da UA, tentar perceber como está África a conseguir lidar com a ameaça crescente das alterações climáticas. Na medida do possível, deverá tentar fazê-lo, também, na Ásia e na América Latina, sendo que, nessas regiões, a falta de uma estrutura supranacional funcional dificulta essa tarefa. Esse trabalho de identificação das ameaças e dos problemas encontrados nos países mais pobres, no concernente à adaptação às alterações climáticas, deve estar na base de um programa abrangente e ambicioso, coordenado pela ONU, que vise ajudar, esses estados, na hercúlea tarefa de se prepararem. Tal deverá ser financiado por todo o mundo, de uma forma proporcional, quer à riqueza quer ao contributo histórico para o problema, evidenciados por cada país.
Mesmo que, hoje, toda a emissão de gases de efeito de estufa cessasse, o problema do aquecimento global e o das alterações climáticas, por este causado, não cessaria. O sistema climático mundial é complexo, apresentando elevada inércia. Imagine-se um navio petroleiro e uma lancha rápida. Se girarmos o leme da lancha, a mesma começará, de imediato, a girar, vindo, rapidamente, a apontar o nariz para a direção pretendida. O mesmo, obviamente, não sucede com o navio petroleiro. Ainda que se gire o leme do mesmo, na totalidade, durante uns segundos, esse navio manterá sua direção para, só depois, muito lentamente, começar a virar. Podemos dizer que o navio petroleiro tem muita inércia e a lancha, pouca. Infelizmente para nós, o sistema climático mundial assemelha-se mais ao petroleiro (em parte por isso, durante muitas décadas, parecia que nada acontecia no clima, apesar do elevado nível de emissões de gases causadores do efeito de estufa que, já na altura, existia: o mesmo grande navio, do exemplo de há pouco, se estiver parado e ainda que coloque os seus motores a funcionar no máximo, durante uns segundos, não sairá do sítio). Deste modo, no decurso dos próximos séculos, independentemente do que possamos fazer para minimizar este problema, teremos de lidar com as suas consequências. É fundamental que o saibamos fazer da forma mais justa possível. Não podemos permitir que este mal venha a agudizar os dramas que, desde o tempo colonial, o mundo ocidental tem vindo a infligir aos demais povos.
A situação é grave. Travamos uma batalha existencial. Precisamos de nos mobilizar e de salvar a nossa espécie. Para tal, todos deveremos pensar no que está ao nosso alcance fazer para ajudar. Quem estiver para trocar de automóvel, deve equacionar a compra de um veículo híbrido ou elétrico. Deveremos pensar se está ao nosso alcance a instalação de painéis fotovoltaicos, em casa. Reciclar ajuda e muito. Sempre que reciclamos e/ou compramos bens provenientes de materiais reciclados (as embalagens costumam sinalizar), estamos a diminuir a necessidade de se explorarem os recursos do planeta (essa exploração acarreta, sempre, níveis de emissão de gases de efeito de estufa superiores aos que os verificam na reciclagem). É importante, ainda, eliminar todo o desperdício alimentar. A produção alimentar é, à escala mundial, um dos maiores emissores de gases causadores do efeito de estufa. Alguns exemplos de ações que, multiplicadas pelos biliões de pessoas, farão a diferença.
Está ao nosso alcance vencer este desafio. Temos os conhecimentos científicos e a tecnologia para tal. Falta haver mais vontade. Também eu fico triste, quando vejo que grupos de jovens vandalizam obras de arte, em nome da salvação da espécie. Não sei se fazem bem ou mal. Não sei mesmo. Reprovo o ato em si mas, de facto, tais abordagens aparentam ser uma forma eficaz de se chamar a atenção, de uma forma extrema e desesperada, para um problema, ele próprio, extremo e desesperante. O pânico em nada vai ajudar mas é importante que todos saibam que o futuro da espécie humana se encontra ameaçado. É disto que se fala, quando falamos em aquecimento global. Não estamos a tentar salvar o planeta, como se convencionou dizer. Há milhões de anos, quando o homo sapiens ainda não andava por cá, os níveis de CO2 na atmosfera eram superiores aos que hoje se registam e o planeta não precisou de ser salvo. Estamos, sim, numa luta pela nossa própria salvação.
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Ricardo Amorim Pereira, Doutorando em Ciência Política, com interesse na área da ecologia política.
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