O MENINO DO RIO
Nem ele mesmo conseguia explicar, mas desde que sabia de si, o menino sentia uma enorme atração pelo rio. Encantava-se com o fluir da água, ora calma e muito quieta como se fosse a pele do rio, ora revolta, como se com a sua fúria o rio quisesse mostrar descontentamento e tomar os lugares que são seus.
Quando isto acontecia, era fugir-lhe para o longe que ele não olhava a conveniências e nem sabia a força que tinha. O rio virava assim como que um cavalo com o freio nos dentes. Transbordava e alagava sem que qualquer margem fosse capaz de o suster. Vingava-se da violência delas quando o sustinham.
Nem parecia o mesmo dos dias e das semanas de serenidade, quando a qualquer um só dava ganas para entrar por ele adentro em mergulhos feitos abraços entre o líquido que era o rio e o sólido que é o nosso corpo. Ao moço quando isso fazia brotava-se-lhe um sentir que o fazia ter-se como uma parte daquele manto de água a escorrer.
Certo e sabido, é que não havia dia em que ele não desse uma escapadela até à beira do rio. Por sorte morara-lhe ao pé e por isso o tinha quase como um território seu, um prolongamento da sua casa. Há quem tenha hortas e jardins e assim como prolongamento do ser-se, mas para ele seu era o rio com os peixes e tudo o mais.
Chegava a pensar que sem o ele não podia viver. Entendiam-se um e outro, como dizia quando lhe perguntavam o que fazia durante tanto tempo e tantas vezes ao pé do rio. Falavam com os olhos, jurava, metendo na conversa um ou outro peixe e mesmo até um ou outro pato, quando o vagar para isso dava.
Está-se mesmo a ver que não faltava quem levasse para a brincadeira estes dizeres e havia até quem começasse a pôr em causa o afinamento da cabeça do rapaz, como sempre sucede às pessoas sem fronteiras no sonho e na capacidade de imaginar. Somente alguns sabem que não há longe nem distância para quem se não fica pelos limites da ponta do nariz nos modos de ver.
Certa vez, ia o outono pelo meio com a paisagem pintada de mil cores, mais parecendo tela feita obra-prima de pintor excelso, quase no lusco fusco e com um dia límpido no entardecer, atardou-se o moço a vir para casa por não ter dado pelo passar do tempo. Era frequente não sentir o caminhar do sol para o lado de lá das montanhas, mas nesse dia alheou-se completamente.
Quando a páginas tantas estava a olhar para a água, mais atentamente porque lhe parecia diferente, o rio lindo, quase igual, com algo que não sabia explicar, mas só sentir, viu uma série de peixes a saltar. Umas vezes mais ao longe, outras vezes mais ao perto. E ele ali a ver e a apreciar.
Veio a lua, o breu tomou o lugar da luz, escuros o rio e o céu, cheios de pontos de luz. Lá no alto, as estrelas, cá em baixo as luzes da cidade e das casas espelhada na água. Céu e rio mais pareciam gémeos de nascença envoltos no mais absoluto som do silêncio.
O rapaz não tirava os olhos dos peixes e eles, vá lá saber-se a razão, ou acredite-se ou não, pareciam reparar nele. Não andará longe da verdade quem disser que ele e eles se sentiam velhos companheiros de brincadeira, elementos de uma mesma coisa, de nome natureza infinda e infinita.
Estiveram horas no bailado os marotos dos peixes para encantamento do único espetador, num desenvolver artístico comandando por um deles, que pelo menos aos olhos do singular público surgia a cada minuto com uma cor diferente, exibindo-se galhardamente e parecendo querer estabelecer conversa desfiada.
O certo, é que por milagre ou por mera imaginação, o diálogo aconteceu e não durou pouco, que isso de se conversar é como diziam os antigos, palavra puxa palavra e depois disse-se tudo e mais alguma coisa, quantas vezes sem se pensar muito. Nada custou tornarem-se amigos. Viraram companheiros de tertúlia até.
Sim, porque o encontro não foi caso de uma primeira e única vez. Durante semanas foi quase como um namoro que não assim se tornou dadas as circunstâncias próprias de cada qual. Mas deu para conversarem e discorrerem como bons conversadores. Comunicavam à sua maneira, que devido a não ser entendível, nem vale a pena que se tente perceber.
Ainda está por inventar semelhante dialeto que permitiu por exemplo que o peixe explicasse que a sua cor não era fixa, porque não se trajando e nem se pintando ele antes de vir para a superfície, era do olhar do observador que ela resultava. Conforme o estado da alma, a luz que entrava pelos olhos que são a janela de cá de dentro, assim ela assumia tons mais alegres ou mais soturnos.
O tempo foi passando e o dia de Natal chegou. Uns dias antes o peixe afirmava a pés juntos, que é como quem diz com as guelras unidas, que na noite desse sagrado dia, iria fazer uma surpresa ao rapaz e à sua família, para provar que tudo o que ele contava em casa acerca deles era verdadeiro.
Não dizia para não estragar a surpresa. Que estivesse atento ao presépio por volta da meia noite, recomendou imediatamente antes do menino do rio se despedir para ir para casa usufruir a consoada no remanso do lar harmonioso e nessa noite especial como sempre mais alargado por virem avós, tios e primos, como apraz a família que se preze.
Ceou-se, distribuíram-se as prendas no meio da algazarra, e os ponteiros do relógio na sala foram-se mexendo e avançado para a meia-noite. Veio a lume o presépio e mais a sua beleza que nesse ano era tamanha e mais que nunca, olharam e apreciaram com deleite.
Nisto, num ápice, tudo ficou escuro. Foi coisa de um piscar de olhos. Mas quando se tornou a fazer luz, todos viram. No presépio, dentro da cabana e mesmo ao lado do Menino Jesus em cueiros nas palhinhas deitado, estava um aquário em forma de rio e, dentro dele, um peixe cor-de-rosa a dar ao rabo e a nadar com um ar todo satisfeito. Abria e fechava a boca como se estivesse a cantar, jurava o menino.
Eu por mim, não sei bem, mas acredito. Só quero é que aquele peixe de que o menino do rio falava, nos apareça sempre com a cor daquela noite. A mim e a si que o ficou a saber dele, através deste correr de linhas que finda aqui.
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