Depois de dilacerados os dias de calor, voltava a chuva à vida das pessoas que aos primeiros pingos do céu resmungavam, contra as pérolas frescas que escorregaram por algumas frinchas da alma.
No Parque Nacional da Peneda-Gerês caminhava um grupo num passeio pedestre para observação da natureza ambiental, quando dentro do trilho começou o forte temporal.
O coração da floresta transformava-se num esguicho de águas esparsas e desalinhadas, sem encontrar saída ou buraco.
Com esta chuva o grupo olhava a montanha velha da serra, e as escarpas envolventes: tudo se admirava ao longo do trilho.
Se a esperança não fosse evocada nas poucas possibilidades, deste Gerês cheio de contraste, à mistura da chuva, eles acabariam todos submersos no rio.
A água era originária da chuva e não conseguia infiltrar-se na rede das galerias subterrâneas. Trilho de imagens intransitáveis, aguilhões a ferir a existência humana alvoroçada e sem proteção, cujo resultado quebrou o fiel cordão do grupo, fazendo com que cada um saísse da tenebrosa superfície, conforme pudesse para onde a vida fugisse.
Que desgraça, dizia a Joana, o elemento mais obscuro do grupo. Estou receosa com a mudança do percurso, custa-me subir às íngremes rochas, sinto-me sob as garras das pedras duras, quase sem energias, tenho pena de não encontrar outro caminho, gosto de terra firme, ou até, se houvesse um abrigo pastoril, onde nos recolher e abrigar.
Acumulavam-se os relâmpagos; os trovões vinham logo a seguir e cortavam o resto da força e da respiração.
E as nuvens a abrirem os lábios, numa profunda carga elétrica, traía a serra, feita de luz e tempestade.
Como numa festa, tudo acontecia, enquanto chovia, e chovia excessivamente, quando eles se aproximaram em torno dos ramos das árvores, até atingir o restolho das folhas e das asas dos gaios e morcegos que fugiam em debandada, num ruído que ribombava pela natureza.
Alguns deles cheios de individualidade, saíram do grupo e decidiram subir a encosta acima, protegida por uma coluna de arbustos de urze e carqueja, salpicada de uma enorme mancha de giestas, onde um estridente vocal de cabras selvagens fazia erguer os olhares nessa direção.
A Joana questionava que nuvens serão estas?
Pela beleza parecem nuvens Asperatus, aprendi que existem muitas espécies de nuvens da chuva, estas têm uma aspereza e aparência de ondas do mar revolto por baixo, um choque de duas massas de ar.
O Rúben, retorquiu-lhe: – é impressionante o teu conhecimento sobre as nuvens, parece que tens magia e tiras a sabedoria da cartola, quem havia de dizer.
Oh, estou entusiasmada por me cruzar com o ocaso nesta caminhada, apetece-me dialogar nem que seja com as nuvens inéditas e assustadoras.
A mulher dava um novo saber sob esta espécie de nuvem e abria outra realidade, na cabeça do amigo que ficou nas nuvens.
De repente, ficaram ao pé dum tronco de árvore decepada, ele parado imaginava que via as garras do mundo, e ela pensava na hipótese de casar com aquele homem enigmático e encantador.
Assim ficaram os dois a vigiar as ideias na velha árvore e a desfrutar os cheiros e sons da montanha, com o perscrutar calmo e lento da cortina da chuva que caía, no suor dos dois corpos humanos.
Que pena, tão juntinhos a ouvir a chuva a cair, com milhões de pingos frios a afogarem-se em sonhos e desejos, a cada momento.
Mas, afinal, o tempo queria o coração a bater descompassado e louco, naquela mulher feia, a querer ser amada.
Isto, realmente, numa caminhada fazia deslizar devagar os dotes do amor.
Nada seria depois igual, nem que viesse a luz ofuscante da manhã amarela. A metamorfose dos corpos seria uma outra estação, ambos pensariam num eventual arrependimento, em escutar os passos de outras horas que se haviam de desfolhar noutras mãos, porque o livro da vida pede uma árvore em flor com frutos maduros, tal como o sonho projetado a que se chama amor.
A Joana tinha o rosto moreno, os olhos vesgos e pequenos, quando fitava as pessoas não deixava uma impressão boa, parecia insegura e mentirosa.
Neste recanto isolado da montanha, algo inesperado ia ser diferente, pensava a caminhante, e procurava o prazer à tona das conversas que fazia com o amigo.
Assim cada vez mais, ela se afeiçoava nos gestos da vaidade e do prazer, bastava pousar-lhe uma folha molhada na pele e, ela gemia, a querer possuir o amigo.
Desentendida com o passado, forrava- se no silêncio e imaginava possuir todos os homens.
E convenceu-se que este também lhe pertenceria e tinha de ser num abrigo pastoril, acolchoado de musgo verde, com algumas penas de pássaro, e umas violetas selvagens, a adocicar a cor da paixão.
Contudo, na aspereza do dia, com as silhuetas no Céu parecidas com lábios abertos em rostos medonhos por pintar abriam mistérios com oportunidades que ela tão perturbada acabou por confessar ao amigo que o céu os ia devorar.
E ele disse-lhe: despe essas palavras!
Eu quero apenas a tua fragrância, o sonho de uma noite bem passada ao luar.
A chuva escreveu com gotículas no chão que vou desnudar-te o corpo e ao som desse vigor não vou parar, serei louco a afundar a minha vontade em ti, e em resultado ficarás como se fosses uma rosa silvestre. Terás o cheiro que há muito desejas ter.
E pedia-lhe, fala-me de amor, do luar e das estrelas. Dá-me beijos sensuais e cobre-me com eles, assim como com os teus seios quentes e húmidos.
Entretanto, já dentro do abrigo pastoril que descobriram para passar a noite, ele continuava a pedir para o embalar na esteira dos fetos do chão, um pouco embriagado pelos medronhos que tinha comido.
Neste mistério de aromas sensuais, eles entranhavam o desejo, arrastavam-se famintos pela noite. Ela cansada caminhava devagar na erva molhada e fumegava na emoção de o sentir e de o querer.
Ele prometeu-lhe que mais tarde ela se iria recordar da tempestade das nuvens novas.
E será que te vais lembrar deste caçador da tua espécie? Sim, até arranjares outro!
Namorar pela floresta e neste momento, é com certeza o melhor de todos os pensamentos e momentos.
Ela surpreendeu-o e murmurou-lhe:
– Achas que eu sou uma mulher para um só instante?
– Que sou apenas a solução para esta noite escura ou uma sombra no silêncio?
Ora, ora, o céu vai ficar limpo com a tua conversa, respondeu ele.
Vamos tentar descobrir o resto do grupo e prosseguir a caminhada.
A Joana sentiu que de repente ele avançava para a segunda parte do percurso, começava a estar distante, noutro trilho por entre os pinheiros.
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Maria Fraterna É o pseudónimo de Maria de Fátima Carvalho da Silva Cardoso, natural de Vila Nova de Famalicão, licenciada em Direito. Publicou os livros de poesia, “No Assédio do Tempo” e “De Dentro Para Fora”. A “Um Deus do Céu e outros contos” é o seu mais recente livro de prosa narrativa. É autora premiada tanto em Poesia como na modalidade Conto. Tem colaborado em várias revistas literárias, tanto na modalidade ensaio como com outros artigos. Participou em diversas e antologias e tem a sua obra divulgada na imprensa física e digital.
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