1
Mais do que deuses, precisamos do limiar do sagrado
do lugar onde bebem as aves,
de regressar ao silêncio de uma noite ida;
mais do que deuses, precisamos do anúncio súbito
da clemência implorada
dos trabalhos do mar;
mais do que deuses, precisamos do homem, da pele do homem,
da sua peugada
sobreposta à penumbra da flor nascida.
Mais do que deuses, precisamos da fronteira da meia-noite
do círculo lunar do grande rio
que corre no sangue da terra humilde.
2
Mãe, um poeta tem música na cabeça,
música de um ” deus me livre”, mas vive
religiosamente,
todas as horas redentoras.
Mãe, um poeta é isto: uma gota no céu, um celo ao abandono.
3.
Diálogos com Sofia
Naquele tempo embalei-te ao som dos blues, jazz e música de
múltiplas paragens,
porque a infância é um deserto
imerso, hélio
de poema, poeira,
miragem, mar, animais
ruínas.
O maliano Ali Farka Touré (1), um grande músico que disse ao
mundo que, antes de ser músico
era agricultor, fazia parte desse baloiço de sono e amor.
Um dia, talvez ainda não te tenha contado este episódio,
explodiu pela casa
a voz de Momo Wandel Soumah (2) e tu, arregalaste
o olho e desataste num pranto nunca visto. Aconcheguei-te a meu
peito e corri para apagar o fogo.
Sim, havia fogo. Havia um incêndio cioso da idade da terra na voz de Soumah.
Eu não entendi que ele não pudesse adormecer-te. Afinal, tu eras
partícula de uma nuvem
nos meus braços.
Coisas de uma avó que adora solos e vozes, como outros adoram
deus.
Quando um homem canta, Sofia, despontam primaveras de fumo.
Como se a casa ardesse, sôfrega, aérea
a harmonia amadurece.
Não sei como dizer-te.
Longamente, a voz do homem que canta, corre num meio tempo,
suspende-se.
Seu odor, porque há odor quando um homem canta,
é violento e doce, é o princípio e o fim,
felicidade e amargura.
É assim, essa voz desagua.
A boca, em sangue tremente,
a boca grita,
a boca gritará sempre
como o vento a toda a velocidade.
Sofia, cantar é revelar o futuro,
é um milagre.
Escuta, escolhi ser árvore,
floração intensa onde os sóis rebentam.
Solfejo de silêncio de todas as coisas
que nos cegam à distância.
O que sei, vem da música que dura
e descansa num plantio de estrelas que não vi.
O que não se vê, acrescenta-nos à herança o desejo
de mudar o curso das águas.
A música escreve-se em lágrimas.
É difícil viver este luto, esta luz em desuso.
Mesmo a música, que respira a cerzir o brilho
no que podemos imaginar,
a música que lembra o céu, o véu de um inverno,
o sol, o mar, um navio,
tem na sua limpidez um tremor oculto.
Porque há cidades que flutuam no fundo de uma vida,
cidades que o corpo silencia,
cidades que se desenham na penumbra de ninguém,
em Abril, de mil fogos uma ave germina,
canta, paira, enrodilha-se.
No antecomeço, uma ave é um mistério,
ergue-se entre uma flor
e uma granada
Num fio de água, uma ave cria a música indomável
para o coração crescer.
Muitas vezes, a luz engole-nos num único lugar
que pode ser a América
onde Jeff (3) cantou.
Muitas vezes a vida começa
pelo que nos entra no sangue,
uma última vez.
Sofia, é primavera
onde Jeff cantou.
Quando o vento regressa
o poema é uma mulher silente sobre o mar,
uma mulher a marear
na mais secreta bravura.
Não tem outro rosto, o poema, senão este,
de luz ferida na garganta,
estreme,
de pedúnculo vivo cambaleando em mágoa.
Mesmo que a noite, em triunfo, não viesse,
naquele tempo, algo se acendia
nome
ou verbo
conquistado com o sangue
a frio,
uma flor a descoberto,
um voo convidando para a frente.
Não sei se a alma se decifra,
ainda que a recorde
que toque sua superfície
num vermelho vivo,
ainda que a restaure com um tiro.
Entendes, Sofia?
Quero como Dhafer (4) chamar o deserto.
Quero tocar esse branco mistério,
subir, descer a pique,
morder o lábio,
a fundo
ser ave vendo surgir a luz,
colher o néctar do eterno.
1) Ali Farka Touré cantor, músico e compositor do Mali (Kanau, 31 de outubro de 1939 – Bamako, 7 de março de 2006)
2) Momo Wandel Soumah, cantor, saxofonista da Guiné Conakry ( 1926 – June 15, 2003)
3) Jeff Buckley ,cantor, compositor e guitarrista, Estados Unidos (Anaheim, 17 de novembro, 1966 -Memphis, 29 de Maio de 1997)
4) Dhafer Youssef, músico, cantor da Tunísia, Téboulba ,19 Novembro 1967.
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Maria Gomes nasceu em Benguela, República de Angola, em 1958. Foi professora de artes visuais e trabalhou em contabilidade após a independência daquele país. Vive em Coimbra. Tem poemas publicados no Jornal de Angola, nas antologias de Poesia 1 e 2 ” Escritas” sob a edição do poeta José Félix, em outras revistas de literatura na web, e na revista de Poesia de Tradução Di Versos nº 8 de Edições Sempre-em-Pé. Participou no poema ” O Estado do Mundo”, poema criado no ciber espaço, no âmbito de Coimbra, Capital Nacional da Cultura 2003, a editar brevemente em livro, e participou na II e III Bienal de Poesia em Silves, em Abril de 2005 e de 2008.
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