Ele falava alto, muito alto. Tão alto que sua voz batia no teto. Ricocheteava, batia e rebatia, atingia a alma, estremecia a calma. E falava errado. Menas, pobrema, enfiava o dedo no nariz, coçava suas partes íntimas em público. Era rico, abastado, estudado. Viajou o mundo todo, sempre com os agentes de viagens dos ricos e famosos.
Ela nunca tinha saído de São Miguel Paulista. Falava tão baixinho que quase não se ouvia. Seu corpo não expressava nada. Seu olhar; medo. Sua mãe sempre foi rigorosa com seu português. Era perfeito, todos os esses, todos os plurais, frases bem construídas, sem vulgaridades, sem ofensas. Pensava, ordenava e só depois falava.
Ele tinha um carrão último tipo, um motor ultra potente e um IPVA que pagaria um ano inteiro do aluguel da menina. Ela tinha uma bicicleta. Vinha todos os dias trabalhar perto do centro com sua magrelinha. Cuidava dela como ninguém. Brilhava. Sua corrente estava sempre lubrificada, o capacete tinha vários adesivos de florezinhas. No inverno vinha com seu cachecol, que a avó cozeu, esvoaçando. O cachecol girava, rodava, brincava como uma pipa no ar. Espalhava sorrisos aos corações mais abertos ao mundo. Ele gostava de álcool, ela de suco de melancia. Ele era campeão de multas, ela respeitava todas as faixas de pedestres. Ele cuspia no chão, ela plantava flores na calçada. Ele chutava cachorro morto, ela acolhia filhotes de gatinhos. Ele votava na direita, ela na esquerda. Ele tinha frieira, ela fazia lindas tranças nos cabelos. Ele peidava no elevador, ela dava o lugar na fila para os idosos. Ele saía com prostitutas, ela ainda não encontrou o seu grande amor. Ele tirava catota do nariz e colocava debaixo da mesa do escritório, ela limpava o teclado do computador todos os dias. Ele atropelou 32 pessoas numa manifestação que cruzou seu caminho, ela chorou. Ele foi preso e ficou famoso, ela não soube. Ele pagou um advogado caro e saiu da prisão, ela continuou sua vidinha. Ele comprou uma arma e montou um grupo de extermínio, ela adotou uma tartaruga que perdeu uma das patas. Ele ficou famoso e se candidatou a deputado, ela sempre adorou ser mesária nas eleições. Ele escreveu e aprovou uma lei obrigando o ensino de esperanto nas escolas públicas, ela começou um curso de francês pela internet. Ele virou governador do estado, ela perdeu o emprego. Ele mandou a polícia jogar gás lacrimogênio nos estudantes, ela fez um novo currículo. Ele riu quando soube que o Senador velhinho tinha sido arrastado pela polícia, ela pintou as unhas de azul. Ele montou um apartamento secreto para se encontrar com o chefe de sua segurança, ela se desiludiu com um namoradinho. Ele morreu com 53 anos, ela continua viva.
E graças a Deus, suas vidas nunca se cruzaram.
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Paulo Weidebach Roteirista e diretor criativo no mercado audiovisual desde 1983. Com larga experiência como videoartista, participou de diversos festivais de vídeo e cinema no Brasil e no Mundo, tendo sido premiado em diversos deles. É especializado em comunicação corporativa criativa, atendendo as maiores marcas do país através da sua produtora Videoimagem. Durante toda sua carreira sempre teve um trabalho autoral na escrita, com um estilo marcante.
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