A PÁTRIA METAFÍSICA – por Cassiano Russo

Foto de Cottonbro

Emílio passava boa parte do seu dia trancado naquele quartinho de pensão. Não saia de lá por horas. Preenchia seu tempo escrevendo. Dizia ele que a única coisa que dava sentido ao vazio de sua existência era a escrita, que lhe funcionava como “exílio metafísico”. Para ele, o mundo lá fora não passava de um deserto de nulidades ontológicas. O escritor solitário via a maioria dos seres como “hipocrisias existenciais” que nada tinham a lhe acrescentar. Com essa sua convicção, o contato que ele mantinha com as pessoas era escasso. Saía somente aos sábados para tomar um drink em um café na avenida central da cidade. Lá ele se reunia com o seu único amigo, um anacoreta depressivo que não encontrava razão alguma para existir, pois a vida lhe era demasiado diáfana.

A presença dos dois deixava o ambiente excessivamente pesado, uma vez que eles conversavam sem nenhuma expressão em seus rostos, como se há muito tivessem morrido e vivessem a vagar por este mundo como duas almas penadas. O dono do estabelecimento os apelidara de niilistas e, todas as vezes que via os dois clientes entrando, pensava: “Lá vem os que velam por Deus, os meus estranhos e fiéis niilistas..

Do outro lado da avenida, um casamento era celebrado. Os noivos saíam de mãos dadas a abraçar os convidados, que lhe desejavam votos de felicidade.

– Veja isso! Um monte de gente reunida para celebrar uma ilusão – observa Alberto, o amigo de Emílio.

– Pois vivem como se a felicidade dependesse de outrem.

– Logo, logo serão escravos da própria união. Infelizes e incapazes de se separarem por causa dos filhos – afirma Aberto.

– Quando vejo essas coisas, creio que o homem está morto, meu caro Alberto.

– Mas a maioria ignora este fato, meu amigo – adverte Alberto, com seus olhos clínicos para as insignificâncias da vida.

– E se apega a ideias ilusórias, como o casamento – complementa Emílio.

– Essa gente mal sabe que Deus está morto!

– E esses pobres coitados acham que serão felizes –  diz Emílio, enquanto aponta o dedo para a celebração matrimonial.

– Se viver significa submeter-se à tirania de ser, de existir custe o que custar, então a palavra existência não passa de uma hipocrisia metafísica, meu caro.

– E os iludidos acham que existem de fato – arremata Alberto.

– Tentamos existir, mas, depois da morte do homem e de Deus, nada mais nos resta do que estilhaços de ser – filosofa Emílio.

– Realmente, o mundo é um grande deserto habitado por cadáveres.

– É preciso criar para não se afogar no grande oceano do vazio.

– E como vão seus escritos? – perguntou Alberto.

– Assim como a vida, eles estão estilhaçados, meu amigo!

– Sei como é. Como Álvaro de Campos, tudo me é estrangeiro! – exclama Alberto, que se levanta, vai até a janela para melhor presenciar a saída do casal da igreja e, em seguida, entorna de um só gole um copo de conhaque.

Emílio dá uma longa tragada em seu cigarro e abaixa a cabeça.

– Somo todos estrangeiros, Alberto!

Não havia mais refúgio para aqueles dois expatriados metafísicos.

FIM.

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Cassiano Russo (Cassiano Clemente Russo do Amaral) é graduado em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina e mestre em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista – Unesp – câmpus de Marília, Estado de São Paulo, Brasil. Inspirado por Dostoiévski, Kafka, Beckett, Camus e Cioran, as suas crónicas constam no jornal local da sua cidade e escreve também para a várias revistas digitais.