A NOITE E A CIDADE – por Ana Paula Lavado

 

As ruas da cidade

As ruas da cidade são inundadas de luzes indiscretas
e vozes esparsas que falam com as cassiopeias.
A noite é imensa e as luzes têm a solidão dos velhos.
Os passos são cadenciados ao ritmo de um poema,
escrito por amor, que acabou por não ter destino.
Um bêbado encosta-se ao candeeiro da esquina
e um carro pára perto da prostituta que mastiga chiclete
e puxa a meia calça já rota de tantas noites.
Uma e outra janela mostram a insónia de quem já não dorme
e um faminto revolve os sacos deixados com sobras de nada.
Já não há corpos diáfanos nem Primaveras férteis.

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Lugares

apercebo-me naquela noite
que não há lugares comuns
sem que os ângulos escuros da cidade
não escondam o olhar perverso
dos embriagados da malvadez.

e amanheço dolentemente
imóvel nos dedos
e com as artérias entupidas.

visto-me à pressa
com a boca a saber ao vómito da noite anterior
e despejo a raiva na neblina sulfurosa da manhã.

Embriago-me num café
antes que a saliva me queime as entranhas
e volto à minha obscura solidão
carregando as minhas tristezas e mistérios
longe da perversidade alheia.

♣♣♣

Hei-de emergir dos muros escuros da cidade

Hei-de emergir dos muros escuros da cidade
ou das terras profundas onde o cheiro a morte me sufoca.
Sentada numa praceta onde moraram as aves
revejo corpos embriagados a dançarem na lama suja do chão.
Um candeeiro, de lâmpada partida, esconde os rostos
desfigurados de álcool, pastilhas e coca
e o rasto a sexo barato vendido nas esquinas mais escuras.

Rebenta-me uma veia no peito e o sangue espalha-se
e transforma-se em veneno que se alastra pelo corpo
e me inunda, e me carrega a morte lenta da desilusão.

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Ana Paula Lavado Nascida em África, Angola é a terra que lhe está no sangue, deixando marcas profundas na sua alma, e uma saudade permanente.
Vem para Portugal no ano de mil novecentos e setenta e cinco, trazendo sol, calor e a frescura da juventude, e na palavra a poesia.
Publicou quatro livros de poesia e algumas participações em Antologias, tanto portuguesas como espanholas.