“Creio que os jornais fazem-se para o esquecimento,
enquanto os livros são para a memória”(1)
Jorge Luís Borges
BORGES TINHA RAZÃO
MAS NÃO FOI RAZOÁVEL
1- O ano de 1946 decorria politicamente atribulado na República Argentina. Após ser solto da prisão e se ter casado com Eva Duarte, Juan Domingo Perón ganhava nas urnas, a 24 de fevereiro, o direito a residir, como presidente, na Casa Rosada. Uns meses depois, o funcionário Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo foi remanejado do seu lugar numa biblioteca municipal da Grande Buenos Aires, sendo mandado inspecionar aves e coelhos nos mercados da capital.
Os motivos são notoriamentre políticos. O portenho de 47 anos, festejado inventor de Ficciones, havia assinado pronunciamentos de intelectuais contra o general Perón. Um saneamento em coerência com os novos tempos que sopravam nas margens do rio de la Plata.
Ignoro de todo se, em tão tumultuada época, o proscrito já sustentava a controversa opinião expressa na epígrafe deste texto. Se já a defendia, será caso para se dizer que o caudillo justicialista “escreveu direito por linhas tortas”. Nessa conformidade, terá sido, outrossim, uma demissão com justa causa.
Embora seja difícil de acreditar que um bibliotecário cônscio de suas responsabilidades e de suas competências segregasse um preconceito tão bizarro, a ponto de sobrestimar os livros e de subestimar os jornais, enquanto, eternamente perenes os primeiros, e visceralmente efêmeros os segundos, receptáculos da memória do conhecimento humano.
2- Seria deveras surpreendente que na biblioteca onde Borges funcionava desde 1938, as chefias julgassem os jornais feitos para o esquecimento e os exilassem para o sótão ou os porões do esquecimento. Tal desatino garantidamente não aconteceu.
Revestiria também o viés do inconcebível se exemplares da edição do ‘L’Aurore’ de 13 de janeiro de 1898 e do ‘Le Figaro’ de 20 de fevereiro de 1909 fossem atirados para a “Geena” do esquecimento, apenas porque não foram publicadas sob o formato de livro. O primeiro estampava na 1ª página a carta J’ Accuse, de Émile Zola, ao presidente Felix Faure sobre o ‘Caso Dreyfus’. O segundo divulgava, em primeira mão, o Manifesto do Futurismo congeminado por Marinetti. “Queremos demolir museus e bibliotecas’, avisava, no artigo 10, seu exaltado paridor. Nem esta desabrida ameaça teria legitimado que a Biblioteca Nacional de Paris, num ato de represália, utilizasse os exemplares para atiçar as chamas das lareiras.
Qualquer pessoa sensata consideraria um despautério, se acaso a Biblioteca Municipal do Porto votasse, ao ostracismo do esquecimento, exemplares do ‘Jornal do Porto’ de 1866. Afinal, foi nesse periódico que Júlio Diniz pré-publicou, em folhetins, o célebre As Pupilas do Senhor Reitor.
Nas bibliotecas dos EUA creio não terem perecido, no deserto do esquecimento, os exemplares do ‘North American Newspaper Alliance’ que acolheram as reportagens de Ernest Hemingway sobre a Guerra Civil de Espanha. Eu nunca li um romance do autor de ‘Paris é uma Festa’, mas devorei, avidamente suas avassaladoras matérias jornalísticas.
Ademais, dificilmente acredito que, na época em que proferiu tão sardônica boutade, Borges já não mantivesse, a bom recato, em seus arquivos, a página do jornal portenho ‘El País’, de 1909, onde se estampava sua versão em castelhano de O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde. Tinha ele apenas 10 anos.
O poeta de Los Conjurados se inclui no escol de escritores canônicos que não iniciaram suas carreiras publicando (em) livros. Antes de ver editado seu título de estreia –Fervor de Buenos Aires- tirocínou em jornais. Em 1919, residindo em Madrid, viu mesmo recusada a publicação de um conto pelo jornal ‘La Esfera’. E nos anos seguintes, à medida que se tornava um consagrado, continuou associado a periódicos. Destaco suas contribuições no suplemento literário do vespertino portenho ‘Crítica’, onde agilizou a pré-publicação de Historia Universal de la Infamia. No ano em que foi saneado da biblô, assumiu a direção de ‘Anales de Buenos Aires’, onde fez publicar Casa Tomada, um dos primeiros contos de um promissor Julio Cortázar.
3- A 16 de junho de 1955 desabou sobre Buenos Aires, o Bombardeio da Praça de Maio. Forças rebeldes atacaram a Casa Rosada. Três meses depois, uma rebelião em Córdoba obrigaria Perón a renunciar e a exilar-se. E el hacedor vê-se nomeado diretor da Biblioteca Nacional. Ao assumir funções, ele deve ter-se deparado com centenas, centenas de livros que nunca tinham sido requisitados, lidos, sequer folheados. Todos mergulhados no limbo do esquecimento.
Nas nossas bibliôs pssoais também mantemos livros que foram apenas folheados. Em contrapartida, muitos de nós, com senso de arquivista, recortam e coletam em dossiês, matérias jornalísticas que desejamos memorar, protegendo-as, assim, das garras do esquecimento.
Duas décadas passadas, o peronismo regressaria ao poder nas terras do Sol de Mayo. Coerente na oposição ao restaurado regime, Borges foi compelido a demitir-se. O afastamento terá sido contemporâneo da taxativa resposta à pergunta de Marcos R. Barnatán. No mínimo perplexante, se tivermos em conta que por esses anos, o prosador de El Libro de Arena escrevia com regularidade para o jornal ‘La Nación’.
4- Não é suficiente alegar ter razão. Para tê-la e mantê-la é preciso ser razoável, filosofou Agostinho da Silva. E, el tigre portenho podia ter razão, mas não foi razoável. Em regra, os jornais têm um prazo de validade muito curto, uma vida escassa, breve, fugaz. A novidade, a atualidade de que são arautos caducam ao fim de 24 horas, no tempo de uma semana. Concebidos para o presente, seus conteúdos estão fadadas para o esquecimento. Todavia, não faltam exceções a essa fatal evanescência, conforme evidenciado.
Em regra, os livros aspiram a ter uma precisão rigorosa, quase científica, uma ponderação conceitual exigente, uma codificação apurada e depurada. Concebidos para o presente e para o futuro, nascem vocacionados para fruírem uma posteridade longa e desejadamente perene.
Ao articular sua leviana provocação, o biógrafo de Evaristo Carriego propendeu a confundir o conteúdo com o continente. Editada em formato jornal, A Rayuela de Cortázar continuaria sendo superlativa obra de arte literária. O ‘The Sun’ editado em formato livro, papel couché e capa dura, continuaria sendo um reles e descartável tabloide sensacionalista. O hábito não faz o monge…
4- Fisicamente extinto em 1986, o progenitor de Emma Zunz ficou privado de testemunhar o advento das vertiginosas cibertecnologias de informação/das ágeis ciberculturas e impedido de vivenciar seus benefícios e malefícios. Por muitos defeitos especiais que essas funcionalidades/utensilagens revistam, elas tendem a atenuar a alegada antinomia entre jornais e livros.
É na vastidão sideral do ciberespaço que pipocam revistas digitais como a ‘Athena’, veículos de expressão/comunicação de culturarte nascidos livres da matéria que restringe, aptos a expandir o espírito que eleva. Nessa dimensão dialética, a redutora antítese teorizada por Borges já se tornou obsoleta, caminhando célere para a superação.
Num futuro já presente todos vamos ter nos bolsos uma biblioteca USB Flash Drive, onde coabitam, em plena harmonia, as memórias sugeridas pelos conteúdos de milhares de livros e jornais, cujos corpos espirituais não estarão confinados ao corpo físico do papel.
1- Conhecer Borges e a sua obra, de Marcos R. Barnatán, Editora Ulisseia, Lisboa, s/d, p. 97.
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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) Faz parte do Conselho Editorial de Athena, desde a Edição Zero. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.
Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ , ‘Os Homens da Minha Vida’ e no início do mês em curso, deu à luz “Corpo Estranho”.
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