MULHER DE LOT
Pesados sulcos, fundo na Memória,
A fogo e ferro marcados n’alma leve;
Lembrança doce do Bem que se teve,
Cuidando-o ‘inda futuro e não história.
Guerrilha eterna e Queda permanente,
Um dia a vã Esperança, mas miragem;
Volvida recordação de boa viagem,
Enlevo desmentido em dor presente.
Labirinto sem Ícaro, qual gaiola,
Armadilha em que a chave da prisão
Está brilhando livre nessa mão
Da prisioneira que ilusa ‘inda consola
Alma lírica com a recordação.
Pura Ilusão a si mesma se imola.
♣♣♣
EXPULSIO (Vírus)
Sim, tu querias, demónio malfazejo,
Arrastar-me pela lama dos miasmas:
Consumido na morte de desejo,
Silvas e rondas, que eu bem te vejo,
Rodeado de sinistros ectoplasmas.
Alma danada, só posso deplorar-te.
Expulso-te da vida que só quero
Límpida e pura, do mui claro e vero.
E que encontres paz em qualquer parte.
Meu coração não nutre malquerenças
Elevo aos céus uma fremente prece.
Findem já todas as desavenças
Tudo do Zero agora recomece.
Perdoo, e também espero,
Ser perdoado, mesmo se apenas
Involuntariamente, em desespero,
Feri. Não haja penas!
Já sinto que o conjuro é eficaz
Vive o teu fado, devolve a minha Paz.
♣♣♣
VIGIA DO MUNDO
Elegante a janela
Tão bela tão bela
Está tão fechada…
São só ripas brancas
De madeira boa
Canelada e nacarada.
Pressentes lá fora
O nascer d’aurora
E corres a abri-la.
Logo jorra dela
A Luz ofuscante
Ou tão-só singela
Nesse mesmo instante?
Irás de um rompante
E verás por ela
O Mundo lá fora.
Se acaso pensares
Em assim culpá-la
Do que divisares
Estás muito enganado
(nem quero salvá-la
desses teus “pensares”):
A boa janela
Deixa vir por ela
O bem e o mal
Do mundo lá fora.
É mero portal
De quem ri ou chora.
Sem tal mensageira
Não tinhas maneira
De ver esse mundo
Da torre altaneira
Que te tem jucundo.
Abre essas portadas
Deixa entrar o ar
Janelas cerradas
Só te dão azar.
♣♣♣
FÓRMULA
Se houvesse uma fórmula, um filtro,
Uma magia,
Se um encantamento durasse a vida
Inteira,
Se se mantivesse a determinação,
E à porfia
Essa Ilusão se demonstrasse, enfim,
Mui Verdadeira.
Se tudo fosse fácil,
um trovão,
Se nas estrelas estivesse escrito
Nítido e Grácil,
Algoritmo simples, a clara equação,
Tudo seria a suprema bênção
A Alegria triunfante,
A Ode ao Infinito.
Esculpirias em granito
Eterno,
E o rito cumpririas
Secreto, Forte e Terno.
Mas não. É a evanescência,
É a contradição.
E não tens ciência
A que lances mão.
Cegos conduzem cegos
Num tatear incerto e vão.
Confia apenas no teu coração
E trespassa-o de dolorosos pregos
Com o martelo fero da razão.
♣♣♣
LUZ E DESAFIO
Por vezes, na noite sombria,
Abre uma clareira de Esperança.
Não sei se é merecida essa Bonança;
Não importa: é Luz qual a do Dia.
Por vezes, quando se nos perde o Norte,
Há uma estrelinha que brilha lá ao longe
E se o chão dos pés se nos aparta e foge
É nesse Céu que o olhar nos dita a Sorte.
Por vezes aparece a voz e a mão,
Que guiam e que cuidam, sem pedir
Nada de nosso em troca, e a sorrir
Saram a Alma, e o Esp’rito elevam,
Instigam nossa Vida, e o Porvir
Ao mesmo tempo acalmam e sublevam.
♦♦♦
Paulo Ferreira da Cunha cursou as Faculdades de Belas Artes e de Letras da Univ. do Porto, onde chegou a Catedrático da Faculdade de Direito. Doutor de Coimbra e Paris e Pós-Doutor da USP. É Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Portugal. Publicou vários livros de poesia, ficção e ensaio, tendo ganho um Prémio Jabuti.
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