Waldemar Bastos – guitarra, voz, canção! – por Hilton Fortuna Daniel

Não me lembrando exactamente do dia – mas do facto – podendo ter sido numa terça, quarta, sexta-feira – talvez num sábado – à hora do almoço, estava eu a trabalhar. Cerca de uma vintena de restaurantes dos dois lados da mítica Rua Augusta adornavam o percurso dos turistas americanos, britânicos, italianos, franceses, nórdicos, belgas, japoneses, chineses e espanhóis, numa aglomeração à indiana à procura da inigualável sardinha à portuguesa e do melhor daquela culinária. Boa aura.

Trabalhava quase sempre das 11h da manhã às 2 horas da madrugada como maître. A nossa missão era persuadir os turistas – ou não precisamente – a ingressar no restaurante correspondente a cada um de nós. Se o cliente aderisse ao menu, seria um golo marcado de livre, direito a gorjeta. Se o perdêssemos: autogolo. Éramos estimulados até a «vender a banha da cobra» a uns quantos fregueses pitiáticos, aqueles que se deixavam persuadir por qualquer conversa fiada. «Mas a sardinha é fresca, é de hoje?». Digam de vossa justiça, caros leitores, se a vossa resposta seria: «Não, não, não, nem de ontem é. É da semana passada»! Dizer a verdade podia custar-me o emprego, então, era encontrar um meio-termo para que saíssem satisfeitos.

O ‘meu restaurante’ ficava ao lado de outro cujo maître (de uma aparência que denunciava um típico lisboeta de Alfama, do Bairro Alto ou da Mouraria) falava inglês, francês, alemão, italiano, espanhol, holandês e, se eu duvidasse, desenhava-me tudo em português: era um CR7 com a boca. Antes de os clientes chegarem ao «meu», vindos do sentido «Restauradores», passavam pelo grande Cristiano Ronaldo. Por vezes, atónito, perdia-me a observá-lo a trocar de língua quando descobrisse que o interlocutor, afinal, não falava aquela, mas outra língua.

Nessa terça, quarta, sexta-feira – talvez num sábado – à hora do almoço, estando eu a trabalhar, vi, a vinte metros de mim, um cavalheiro alto como se tivesse vestido de “Preta Luz”. Seria turista? Aproximou-se e zás! Surpreendi-me! Propus-me a um destemido aceno, mas saiu-me uma timidez que me é própria. Temia ser ignorado, confesso. Mas, num ápice, lembrei-me de ter sido bem acolhido pelo grande músico Jorge Aragão, e a minha coragem gravitou neste trunfo. Entre arriscar e arrepender-me, apostei no primeiro verbo. Os meus colegas, portugueses e brasileiros, ignoravam a imponência do nome que me ouviram vozear por duas vezes.

– Waldemar Bastos!? Waldemar Bastos!?

Ainda que, inicialmente, desconfiado, olhou – por milésimos – para a inocência dos meus olhos através dos quais acedeu às minhas mais imaculadas intenções. E como se me tivesse reconhecido de algum lado, como se tivesse voltado aos seus tempos de ingénua travessura na sua cidade natal, Mabanza-Congo, simpaticíssimo, ripostou:

– Oh! Ooolllááá! Está tudo beeeeem? O que fazes aqui?

Foi mesmo assim que se dirigiu a mim. Confirmava: era aquele o autor dos versos «para quê tanta dor, para quê tanto ódio?, se somos irmãos, e temos, e temos e temos que dar as mãos».

– Trabalho neste restaurante, sou anfitrião, tal como todos os de camisa branca e calças pretas nesta rua.

– Mas… E fazes mais o quê?!

– Sou estudante. Vim cá para estudar. As dificuldades fizeram-me sentir a atravessar o inferno descalço, por isso, trabalho aqui e acolá para me manter vivo. Mas queria também lhe dizer que sou seu admirador confesso, ouço as suas músicas sempre, acompanho a sua carreira.

Julgo eu que Waldemar Bastos, até aí, vira que se tratava de um comum admirador. Era-o e sou-o ainda. Quando ia despedir-se de mim, ouviu o que – vos posso fazer crer – não esperava de um rapaz cujo aspecto sugeria um inocente, imberbe, bairrista e nada apreciador de world music ou folk:

– Waldemar Bastos, parabéns, eu sei que Thomas Moon (um reconhecido músico saxofonista, escritor e crítico de música norte-americano) o elegeu para figurar no seu livro “1000 Recordings to Hear Before You Die (mil gravações para ouvir antes de morrer)”, ao lado de lendas como Leonard Cohen, os Beatles e seus membros, Aerosmith, Beethoven, Chopin, Mozart, Bach (o meu músico preferido, entre os clássicos), Ray Charles, Manu Dibango, S. Wonder, Djavan, Bob Dylan, Bob Marley, Missy Elliott, Eminem, Cesária Évora, Fela Kuti, Salif Keita, Nina Simone, Aretha Franklin, Marvin Gaye, M. Jackson, Pavarotti, Queen, Amália, 2 Pac, João Gilberto, Guns N’ Roses, Caetano Veloso, Juan Luis Guerra, centenas de referências do hip-hop, da pop music, do folk e sobretudo do rock e world music, sendo a sua canção “Sofrimento” do álbum Preta Luz eleita um marco. Sei que as suas músicas, tal como a “Balumukeno” de Bonga, constam da banda sonora do filme Sweepers, de 1998.

Orgulhoso, talvez surpreendido, sorrindo, pendeu a cabeça em minha direcção e sentenciou:

– Não vamos fazer uma fotografia para recordação?!

Fizemo-la… E umas três. Despedimo-nos e foi-se embora, foi desaparecendo aos poucos por entre a multidão que se amiudava como um sol poente a pretender descansar por trás das praias da Linha de Cascais.

– Quem é Ele, Hilton? Os teus olhos brilhavam, mal conseguias falar! Quem é?!

A resposta era óbvia, a que vocês, caros leitores, possam imaginar: comedida, mas endeusada. Parece paradoxal? A vida é feita de paradoxos. O mesmo paradoxo que o impediu de resplandecer no seu berço, mas permitiu-lhe luzir como lua a ressignificar dias tristes como breu pelo mundo fora. Como estrela, cintilou nos EUA, no Canadá, Reino Unido, na Alemanha, em Portugal, França, em qualquer lugar, menos onde mais o desejou, qui-lo porque não se consideraria realizado se os seus não o (ou)vissem.

Volvidas mais ou menos duas horas, lembro-me como se fosse ontem, Waldemar Bastos reapareceu como sol das seis dentre a multidão que vinha do sentido Praça do Comércio, com uma caneta e um disco às mãos. Autografou-mo aí mesmo ao lado dos colegas, falamos um pouco, trocamos contactos e convidou-me a assistir a um concerto seu daí a poucos dias, num dos auditórios da Calouste Gulbenkian, instituição que viria a dar-me uma bolsa de estudo no ano seguinte.

Convidei duas amigas, doutorandas, à época: uma italiana e outra portuguesa. Não declinaram, fomos, às 21 horas. Pelas nacionalidades, parecia uma abertura dos Jogos Olímpicos da Avenida de Berna.

Leitores, silêncio, silêncio…! Iniciava-se o concerto numa sala a rebentar pelas costuras.

GUITARRA, VOZ, CANÇÃO!

Lembro-me de que, embora tivesse começado a dedilhar pela segunda corda da guitarra, de cima para baixo, inaugurava a sua apresentação em “Dó Menor”.

Aquela voz potente, que trespassava as barreiras de um palco a céu aberto, a sua voz e guitarra que embalavam as copas das árvores e inibiam os apartes dos que tagarelavam, aquela voz que ressoava num alcance que evocava Freddie Mercury ou Sinatra, aquela voz era dEle. Quem não dançou, quem não se surpreendeu, quem não, quem não?!

Reza a lenda que WB abusava das “High Notes” que se evadiam de qualquer sala, daquela extensão vocal cujo timbre era invulgar, daquela musicalidade absolutamente sinestésica, daquelas letras à dimensão de Angola, de África e daqueles agudos, apenas para que – tal como reflecte a imagem – um dia pudéssemos olhá-lo de baixo para cima como uma estrela que atingiu a imortalidade. Olhamo-lo como os terráqueos desbravam os anjos entre as estrelas de um céu agora cheio de incertezas.

Todavia, as circunstâncias da vida fazem-nos crer que nos revestimos, quase sempre, de um espírito de «necrofilia», não no sentido insano e morto da palavra, mas por tendermos a adorar, venerar e idolatrar como última gota no oásis os feitos dos nossos a título póstumo. De Angola, não faltaram palavras repletas de boas intenções para o glorificar agora, até verbos ainda não inventados serviram para falsear um sentimento que lembra o «nada». Não se sabe se é por isso que «necrofilia», com o sentido atribuído aqui, rima com «hipocrisia». Não se sabe, vai-se lá saber!

O seu legado vai ser estudado nas universidades, retratado em livros, artigos académicos, será tema de palestras e conferências por várias gerações que, um dia, perceberão que só um anacronismo estonteante explicaria o facto de uma lenda como WB viver num período incompreendido como este. Fomos pequenos para a sua dimensão artística e cultural.

Uma das suas canções icónicas tem como título «Lubango», em homenagem à venerável e rica cidade do interior de Angola, onde vivi, cujo refrão é «lalipo, lalipo; lalipo, Lubango», a qual, em umbundo, significa «durmam bem, fiquem bem, Lubango», também gravada com a participação especial de um vencedor do Prémio Camões de Literatura, o grande Chico Buarque, autor da imortal canção «Apesar de você», concebida em contexto da ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985.

Se fosse realizado um filme em seu tributo, os temas orbitariam na sua genialidade e espiritualidade artística, na paixão pela guitarra, na voz desamordaçada, na saudade, na angolanidade, na resistência, na fraternidade, na verticalidade, na obstinação, mas convergiriam num único título “Waldemar Bastos, o intemporal”.

Enfim, os seus versos terão que se acostumar à orfandade a que estão sujeitos e viver sem a companhia dos acústicos com que sempre nos presenteou. As estrelas não morrem, deixam de brilhar na nossa constelação para habitar noutra talvez melhor. Waldemar Bastos fechava os seus concertos com «GUITARRA, VOZ, CANÇÃO», em «dó menor», e encerrou o seu maior concerto, que é a vida, deixando-nos em “DÓ MAIOR”.

Afinal, «lalipo», não sendo apenas eterno adeus, pode ser um até-já!

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Hilton Fortuna Daniel É docente de Português, linguista e escritor angolano muito desconhecido.