CACIMBO NOS PEDAÇO DE BANANA- por Jonuel Gonçalves

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Acordei começava a noite  sem dúvida deve ter sido a chuva miúda tipo cacimbo grosso no meu rosto que me acordou e pela hora devo ter ficado ali desacordado umas sete horas, não me lembro a que horas caí mas sei que foi devagar e seriam talvez 11 da manhã com um sol abrasador mas eu tinha que atravessar aquela parte da savana para mais adiante conseguir boleia e continuar. De resto enquanto caía devagar lembro-me que só me lembrava de ti e agora também ao acordar ouvi até a tua respiração aqui do meu lado, demorei para entender onde eu estava e estaria fazendo aqui no chão com a chuvinha sem parar no meu rosto como se fosses tu a murmurar comigo. É. Falas comigo em qualquer lugar mesmo quando pensas que não me lembro de ti, lembro sim e a tua voz aparece como chuvinha na savana quente a salvar-me a vida. É isso de certeza. Devo ter caído por muita falta de água, estava com muita sede mas o risco entre voltar atrás ou ir pra frente era igual e agora estou com a cara e os lábios molhados, abri a boca junto com os olhos louco por água muito mais que por comida, embora dia inteiro sem comer também não facilita caminhada longa. Fiquei deitado de cara para cima depois virei de cara para baixo e deixei a chuva encharcar a roupa, sede destas é assim só alivia se houver água sem limite até a tua voz entrar mais no meu ouvido esquerdo me fazendo olhar para lá e lá adiante estava aquela bananeira mais sozinha que eu com as bananas  meio fodidas  das dentadas, acho dos morcegos, mas aqui que se fôda vou comer as sobras e vai me aguentar, devem faltar só sessenta quilómetros para chegar á estrada, chego lá amanhã.

Enquanto andava de manhã e enquanto caía de sede não tive medo, mas agora tenho sim, sou sempre assim durante o perigo resisto e enfrento, depois dele começo a pensar no pior e daí vem isto de não me deixar  parado muito tempo. Tenho que andar, andar muito e ir longe, gostava que viesses comigo mas tu não te vais meter numa loucura destas e esperas que eu volte ao fim de uns dias de umas semanas de uns meses, sempre menos de um ano. Nem aquela porra de guerra  me assustou na altura mas espatifou coisas aqui dentro da cabeça a ponto de hoje ter medo dela recomeçar mesmo sem haver qualquer sinal dela ou então vejo sinais dela sem serem dela. Toda a gente hoje usa máscara e basta esquecer o motivo desses milhões de máscaras em pessoas de olhares desconfiados para eu dizer ihihih puta que pariu vai começar aquela história da “ameaça clara e imediata” outra vez.

Ficar parado muito tempo não é aconselhável para mim, não fiz mal a ninguém mas penso assim, quando caminho fico livre dos pedaços espatifados dentro da cabeça, fico em paz e não tenho medo de nada. Só tu me fazes falta, por isso não te tiro da cabeça nem dos ouvidos, é a minha defesa contra aquilo que se espatifou. Amanhã estou na estrada vou caminhar toda a noite oxalá o chão não tenha buracos fundos nem apareçam cobras no capim. Mas sempre chego á estrada e sempre alguém olha para mim com cara espantada mas deixa-me entrar no carro ou no camião. Mais uma semana e chego a casa. Obrigado por teres enviado a chuva miúda.

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Jonuel  ( de José Manuel ) Gonçalves economista angolano, atualmente no Brasil concluindo pesquisa pós doutoral sobre  ascensão e crise de economias emergentes dos dois lados do Atlântico Sul. Vários livros publicados com edições em Angola, Brasil e Portugal, ficção e não ficção. Em Portugal, não ficção: “Franco Atiradores”, “E se Angola tivesse proclamado a independência em 1959?”; romance: “A Ilha de Martim Vaz.