Depois da morte do marido, o amor, resumia-se agora à inevitabilidade da memória de um passado que tinha valido a pena, a espraiar-se pelos filhos nascidos na Bélgica e as saudades que tinha daquele céu de chumbo, que convidava à leitura e reflexão no escritório aquecido, onde passavam largo tempo a olhar pela janela alta, em forma de ogiva com vitrais no canto, o relvado verde húmido onde alguns mais afoitos jogavam à bola de galochas.
Ela só queria voltar a encontrar alguém para partilhar a manta do escritório, dissertar sobre a apropriação artística da paisagem rural ou trocar ideias sobre A Montanha Mágica, ainda procurava nas redes sociais olhos para o seu corpo, sem resultado, as pessoas pensam que o insucesso se pega, a pele engelha e os dentes amarelecem até cair. Ainda tinha esperança num resto de vida a preços de oportunidade, fazer parte de uma história em que o elenco não saísse antes do fim, porque a morte, apesar de quase sempre separar mais vezes do que se pensava, doía menos se a levasse abraçada a alguém. Sentiu sempre a falta dele espalhada pela casa, especialmente na cama onde o amor a deixou sempre exausta e daí para cá esperou que aparecesse alguém para lhe baralhar a memória, que lhe fechasse as cortinas dos olhos e deitasse fora a chave dessa névoa passada em que fora gente.
Gostava de ter sido uma personagem de filme, uma qualquer, no cinema amava-se ou faziam-se coisas à distância com os olhos sem poiso certo ou com ele nas próximas cenas, com o público à espera do grand finale, mas era míope, custava-lhe a reconhecer um amor mesmo quando estava diante de si. Esbarrara no marido, literalmente e foi pelo cheiro, pelo hálito quente e neutro, depois foi uma questão de pele, arrepiava-se quando sentia os seus dentes nas costas, nos ombros, a puxarem-lhe o lóbulo da orelha, arrepiava-se ainda, sempre que pensava senti-lo em si, um só corpo com duas metades coladas.
Depois veio a doença, que pôs um ponto final numa frase inteira.
Aos poucos, desapareceu como funcionária, desfez-se como artesã deixando a meio as tapeçarias que ainda lhe davam alento, convivendo apenas com o vazio. O mal tomava forma nos insectos que apareciam na cozinha, não despejava o lixo com frequência diária e os pratos com restos de comida faziam fila na bancada. Estiraçada no sofá da sala, os dias eram iguais às noites, iluminados indirectamente pela televisão sempre ligada a que não prestava atenção. Não queria ajudas, preferia que não fizessem limpezas nem lhe mexessem nas coisas porque assim sabia andar pela casa sem sobressaltos ou acidentes, sempre fora assim desde que ficara a cargo da madrinha e engravidou na adolescência, mesmo a fechar o mês de Abril em setenta e dois.
E então, numa manhã quente de primavera levantou todo o dinheiro do banco, comprou um carro e fez-se à estrada, numa paisagem a animar-se na voragem com que as árvores perdem tamanho com a distância, até caberem dentro de uma fotografia.
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Luis Bento. Nascido em 64, foi professor, empregado bancário e procura novos desafios profissionais enquanto gere o blog bento-vai-pra-dentro-bento, onde publica textos de prosa ligados à crítica de costumes, reflectindo sobre a sociedade portuguesa contemporânea. Mantém colaboração dispersa em revistas foi finalista publicado no Prémio Novos Talentos FNAC da literatura 2012, Poesia da Vila de Fânzeres 2015 e Prémio de Literatura Lions Club 2017. Frequenta o mestrado de Comunicação e Artes na FCSH da Nova.
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