começo com este nada de hoje vibrando mediocridade
latente e late
pulsando o sangue gelado e cinza das coisas cansativas
que me cingem quase dípteros reverberantes
as folhas das árvores nas calçadas estão manchadas de fungo
passo indiferente como sempre faço
a indiferença é uma estratégia escudo e arma
às vezes asfixia pode-se matar ou morrer de indiferença
ela furta a vida e também a usamos para sobreviver
enquanto vou descobrindo
que as tempestades os redemoinhos
nas poças d’água nada mais são do que
a normalidade descalça
trasbordando conflitos mínimos cotidianos
procuro alguma distração é vital adquirir um desvio
imprevisível no meio das nuvens
no feixe das calhas entre os dedos das mãos
ninguém pode ser você no derradeiro momento
em que você precisa ser outro
procuro me distrair mas a única coisa que encontrei
foi uma fotografia tua na internet um vínculo afastado
e a má qualidade do pixel
uma difusa alusão à tua boca fechada não tenho
outro morango me contento em olhar os teus olhos
pequenos na foto não tenho outro morango aliás
na televisão aquele peixe que caiu nas mãos do eslavo
no documentário sobre escritores e Halldór Laxness
teve o coração arrancado das brânquias e ainda
continuou pulsando
parecia um morango vivo por isso penso que o morango
pode ser um coração
morto desligado mole e adocicado adorado pelo mofo
a sua boca fechada não altera a invariabilidade da saudade
“Steck ihm die Zunge in den Mund und lang”
a minha saudade de querer enfiar a minha língua na tua boca
não jure como os outdoors coloridos tu não cumpres
com as tuas palavras no e-mail quando diz querer me ver
não cumpre
“Ich sehe dich, wenn auf dem fernen Wege der Staub
sich hebt”
não irei ao banco hoje farto de contas a pagar
me refugiei nas brumas da lírica
e neste vazio predominante cultivado
com a urina transparente das sombras
fui almoçar atravessei a ponte Jannowitzbrücke
entrei na estação de metrô
no vagão o cheiro de um medingo sujo de fraquezas
invadiu minhas narinas
tem aqueles que carregam sacolas cheias
de medos e delitos mesclados
com as cores das garrafas vazias e recicláveis trocadas
por alguns trocados nos supermercados mudei de lugar
mesmo porque a indiferença entre mim e ele… sei me fantasiar
desde pequena aprendi o valor das lantejoulas
dos granulados de ametista dos carnavais intrínsecos
das máscaras de pele de músculos de dilatação na pupila
e o valor das frases de Hamlet
embora as frases tenham vindo mais tarde
quando o crepúsculo já era noite
e “viver sempre foi muito perigoso” é um dia
de vento levantando
os cabelos como as asas negras de um corvo
a procura de gravetos e encontra restos
de batata frita na calçada
pode-se construir ninho com restos de batata frita feito palitos?
no útero de um saquinho do McDonald’s?
o vento ameaça as folhas fracas com a forte ladainha cíclica
ou as instiga à migração à irremediável partida
passo indiferente como sempre faço
mas foi o que me impediu de sentar a mesa na calçada
que vomita a balbúrdia do meio dia – intervalo do almoço
para ouvir as pessoas ao lado “modulando sílabas conhecidas
e banais que eram sempre certeza e segurança”
permaneci no recinto interior na garganta da janela
panorâmica que alimenta meu olhar
de paisagem de árvore, rua e rio
escuto os sussurros dos meus pensamentos
germinarem e me lembrei
que os Pirahãs na Amazônia possui um idioma
sem futuro e sem passado
e não conhecem Horácio não falam
do ontem do amanhã e do hoje do ontem
“Vive bebe o teu vinho no curto prazo no longo nunca se sabe”
temos muito a aprender com os índios e os destruímos
aprender pode ser dor mais do que a espátula
penetrando a clavícula de Siegfried
mais do que a flecha de Paris no calcanhar de Aquiles
sobre a mesa um prato com carne e exílio quanto mais
nos distanciamos de nós mesmos
mais penetramos a fundo em nosso ser no interior
da azeitona preta da árvore da vida tão implacável
como o código do rei Hammurabi
escrito nos nossos ossos envelhecidos nas articulações
das raízes e nos galhos da História
sobre a mesa um disco de alabastro assim vim a saber
de Enheduana a sábia sacerdotisa que viveu a trezentos anos
após a criação da escrita na Suméria “minha suave boca de
mel torna-se repentinamente confusa” e ainda não consigo
deixar de procurar a boca tua
são poucos os dias nos quais não atravesso pontes
deixo tudo preparado
para ter as pontes a meus pés mesmo as mais longas
pesam na minha bolsa como ancora como livro
resta a realidade descascada o gomo gordo de cotidiano
o que não significa imprescindível mente o amargo
um homem lê o jornal a mesa ao lado da minha
ele se alimenta da “ewige Wiederkunft”
“Die Ewige Wiederkunft des Gleichen”
do constante retorno dos conflitos humanos ouroboros
das guerras que produzimos dentro e fora da gente
longe e perto de nossa consciência “viver é resolver
problemas” passo indiferente como sempre faço
quando não atravesso pontes naufrago sem nunca afundar
permaneço submersa na calda espessa e viscosa no xarope
de monotonia cuspido no chão carpetado dos escritórios
as grades invisíveis me vestem de automatização
não há como escapar e cair na rede
dos versos
eu teria que decodificar a saída de ao menos sete labirintos
e terminar de construir o inacabado mosaico
no quintal da minha memória
nos corredores do metrô as estações mudam sem dizer
que o outono trouxe claridade furtada do verão
mas o vento não nega a verdade
e proclama o esmaecer
trago no peito uma caatinga crepuscular vista quando
meus olhos vacilam e deixam de forjar o rútilo você reparou
que o vento é como as ondas marítimas? movimento
e quietude ir e voltar chegada e partida
as árvores me ensinam embora sempre no mesmo lugar
e peço a conta
a jaula do escritório me arrasta consigo oito horas diárias
e me atrasei treze minutos
Berlim 2012
♦♦♦
Viviane de Santana Paulo (São Paulo/Brasil), poeta, romancista, tradutora e ensaísta, autora dos livros, Viver em outra língua (romance, Solid Earth – Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã (poemas, Multifoco, Rio de Janeiro/RJ, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, Gardez! Verlag, Alemanha, 2005), Passeio ao Longo do Reno (poesia, Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Em 2012, participa do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua, e em 2016, do XX Festival Internacional “Noites de Poesia”de Curtea de Arges, Romênia. Vive em Berlim.
You must be logged in to post a comment.