Zedes, 5.000 b.p.
O Rapaz observava de longe os preparativos para o cerimonial. Estava ainda ofegante pelo caminho percorrido, ligeiro e a corta-mato desde o povoado, distante algumas centenas de metros daquele lugar.
O rebanho acordava de uma noite fresca e orvalhada e ouvia-se aqui e ali o balido de um cordeiro ao qual a mãe-ovelha nem sempre respondia…
Duas mulheres com pinturas de negro e ocre na face haviam colhido calêndula e alvas folhas de esteva para cobrir o átrio do monumento e apressavam-se em direcção à fogueira que crepitava ali a pouco mais de trinta passos.
Havia já sido retirada com a ajuda de dois dos caçadores, a laje granítica que selava a câmara funerária.
O sol não nascera ainda para os lados da Fraga Redonda e embora já nos idos de Maio, uma teimosa névoa arrefecesse as terras mais baixas e as reentrâncias dos corgos que dali brotavam, estes desciam para o patriarcal Douro em sobressaltos de espuma, embalados pelo longínquo bramido gerado pelo fragor surdo das múltiplas cascatas.
O grupo subira já até ao pequeno terraço da primeira anta e os quatro homens pousaram a defunta sobre as pétalas do átrio onde o Xamã se perfilava olhando a Nascente.
O Rapaz aproximou-se furtivamente deslizando, ágil como um corço, por entre as moitas de esteva e urze até que a distância lhe fosse amiga e permitisse ouvir a prece…
O sol mostrava já a coroa quando se ouviu o primeiro “salmo”. Umas palavras simples para que a defunta fosse bem recebida no seu regresso ao mundo inferior, onde os vivos não têm lugar e as montanhas não se cobrem de verdes e amarelos como ali bem perto onde ficava o povoado.
As duas mulheres ergueram os vasos de cerâmica finamente decorada com traço de buril e aspiraram a doce fragrância da mistura de mel e rosmaninho nela contida.
Só ele entrava, o Xamã, no corredor do monumento, puxando a esteira de junco grosso que transportava aquela que fora a mais estimada do clã.
Já o Sol iluminava o interior do monumento quando a deposição teve lugar em posição fetal, e com a cabeça voltada a poente, como que preparada para olhar de frente a barca da Lua que se mostraria apenas muitas horas mais tarde.
Voltado para o monumento, o Xamã proferiu o segundo conjunto de palavras desejando à defunta uma viagem sem sobressaltos e dirigindo-se aos entes mais próximos para atenuar a dor da separação eterna – apenas umas palavras de conforto e esperança para aqueles que ainda não transpuseram aquele portal.
Junto ao monumento, dezassete elementos do clã assistiam e testemunhavam silenciosamente o ritual de passagem.
A laje foi reposta e teria agora lugar o momento das oferendas, sim porque sem víveres e sem essências, como poderia a defunta sobreviver na viagem de regresso?
Dois vasos cerâmicos, um com frutos e água e outro com alguns pedaços de carne de caprino, foram colocados no corredor da anta precedidos de um ramo de flores silvestres trazidas de uma colina sobranceira ao monumento.
O colar de contas, em variscite, propriedade da mulher agora em viagem para o mundo inferior, de coloração esverdeada bem como um movente já bastante polido em granito de grão fino, foram igualmente depositados já quase no exterior do monumento. No momento seguinte, foi reposta a pedra de selagem do próprio corredor de acesso e toda a estrutura recoberta com terra e blocos de quartzito que por ali abundava.
A fogueira crepitava ainda quando o rapaz se aproximou ainda mais. Ninguém dera por ele mas ele havia visto tudo e ficara a saber da vida e da ausência dela e de como se regressa ao ponto de partida, pelo menos a julgar pelas palavras do Xamã.
Imaginou a viagem, o regresso ao mundo inferior, a passagem para um estado anímico que apenas permitia a recordação, e o momento da partida em que era abolida para sempre a relação material.
Não lhe permitiram, tal como a nenhum juvenil não-iniciado, acompanhar a cerimónia, destinada apenas a homens e mulheres já estatutariamente integrados como tal, mas ele havia estado lá, furtando-se á vigilância de dois dos anciãos presentes.
Assistiu em emoção contida, estóico, como um verdadeiro homem. Saciou a sua curiosidade e partiu para o regresso ao povoado mais calmo e mais confortado. A cerimónia apaziguou a sua ansiedade e poderá agora regressar às pequenas tarefas de aprendizagem e lazer. A mãe da sua mãe descansava agora no lugar sagrado e empreendia a partir de lá a viagem de retorno à Terra-mãe.
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Manuel Diniz Gaspar Cardoso Cortes. Médico – Chefe de Serviço de Medicina Geral e Familiar e Terapeuta Familiar pela Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar.
Fotógrafo da Natureza e Vida Selvagem desde 1980. Prémio Carreira do FAPAS e C. M. Castelo de Vide em 2016 pelo trabalho desenvolvido nesta área.
Aluno de Mestrado em “Arqueologia pré-Histórica e Arte Rupestre” UTAD – 2016/2018.
Autor dos livros ”Momentos ao Natural” (2007) e “Viagem” (2015).
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