UMA MANEIRA DE DIZER O QUE NÃO SE ENTENDE
Precisava duma casa onde coubesse a minha vida toda, soalheira,
abrigada da invernia, distante dos lugares familiares, onde coubesses tu,
uma árvore ao pé, móvel e literária, imprecisa como uma lâmpada
de névoa, e ser ela o jardim todo e o jardineiro. Já vou suportando atrasos,
partidas adiadas, quem não parte também regressa, regressaremos todos,
um dia dentro duma carruagem a chiar numa estação desconhecida,
a desembaciar o vidro com a mão, porque havemos de chegar sempre a algum lugar?
a casa não é um lugar, é uma maneira de dizer o que não se entende,
uma árvore ao pé, o gato a esticar o tempo, sonolento, vivo
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SÓ O QUE NÃO SE VÊ EXISTE DE VERDADE
Amo o que nunca chegou ou o que chegou tarde, só as coisas pequenas
podem ser grandes, o meu sono é como o sono das árvores, ventos desleixados,
minuciosos, desejos verdes de insónia, ninhos cultivados pelo esquecimento,
eu tenho fé nos ninhos abandonados. Só o que não se vê existe de verdade,
o dedo do tempo a traçar geometrias no chão, a pequena ciência da infância
a correr no meio dessas armadilhas, grãos de romã na humidade doce
da Tua boca, meu Deus! na verdade não sei o que amo, talvez ame
aquela pedra triste onde ninguém se senta, pedra fechada no ventre das ervas,
os cascos firmes no chão, no limiar da terra, sôfrega, saciada
♣♣♣
A ALEGRIA SENTADA SOBRE A CARNE MACIA DAS ERVAS
Não sei como se abre o coração, se é com água ou com fogo ou com a brisa suave
da manhã, com um bisturi é que não; o coração abre e apaga os seus caminhos,
guarda o tempo, cada grão de tempo ele o recolhe com cuidado, orifícios vibrantes,
apícula minucioso de territórios místicos. A alegria tem uma maneira confusa de correr,
o desassossego das folhas quando está a chegar o vendaval, o embalo distraído das mães
a sonhar para a infância um movimento sem fim; a alegria tem muitos dias tristes,
sentada sobre a carne macia das ervas a destecer nuvens no céu, um silêncio cheio
de lugares estranhos: diante de certas palavras como o indígena diante dum espelho,
o corpo a nascer das raízes verdes, invioladas da terra, calorenta, fria.
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Nuno Higino nasceu em Felgueiras, Porto. É professor de História da Arte na Universidade Fernando Pessoa. É o responsável, desde 1 de Fevereiro de 2018, pela programação da Casa das Artes de Felgueiras. É responsável pela Editora Letras e Coisas. Tem vários títulos publicados na área do ensaio, da poesia e da literatura infanto-juvenil:
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