LITERATURA DE CORDEL – por António Adriano de Medeiros (AAM)

Literatura de Cordel

O Grande Debate de Lampião com São Pedro

Leremos hoje um rimance de cordel escrito por um dos mais famosos poetas do Cordel Nordestino, José Pacheco da Rocha, pernambucano, falecido em 1954, o poema O Grande Debate de Lampião com São Pedro. Trata-se de uma raridade no cordel, pois os versos são escritos não em sextilhas ou septilhas, mas em décimas de sete sílabas. Lembro ao leitor que, em sendo o cangaceiro Lampião considerado quase um semideus, muito duvidavam mesmo de que fosse possível matá-lo, de que ele fosse mortal, razão pela qual grande parte do poema – nada menos que dez décimas, ou seja, cem versos, se refere às perambulações do Poeta por vários lugares, alguns com nomes bem sertanejos – Cambito Quebrado (perna quebrada), Baixa da Égua, Pilão Sem Boca, Brechas da Gata – outros sem dúvida que remetem ao Reino da Poesia – Casa da Madrugada, Terra do Sol, Reino do Mestre Espaço, ou o lugar onde se enconta a Deusa Flora.

É uma sátira muito bem feita, onde o Céu, ou o Paraíso, a Morada do Deus cristão e sua Corte de santos, é mostrada como uma espécie de fazenda ou mesmo um sítio sertanejo onde não falta sequer o cigarro caipira – pelo menos dois santos fumam no rimance, São Pedro e um tal “São Panta”, que deve ser o São Pantaleão, ou Sâo Panta Leão, como escrevem alguns. O clima de uma casa tranquila da zona rural nordestina é quebrado no finalzinho do jantar do porteiro do Céu, que já está no cafezinho quando ouve as pancadas na porta. A demora em atender o freguês, ou cliente, que na verdade não seria um cliente digno daquelas hostes pois era Lampião, faz com que possa o suposto Céu cristão ser comparado ainda a uma repartição do Serviço Público; há inclusive um momento em que São Pedro trai alguma insatisfação com o seu trabalho: “Triste do homem  empregado, que só lhe chega aperreio!” Em outro momento, o cliente, se  sentindo mal atendido, chega a lembrar ao “funcionário público” que ele,pode ser demitido. Interessante é a existência de muitas armas brancas no Céu de Pacheco, alguns santos punham uma faca na cinta, tal como faziam cangaceiros, ou fazem os feirantes nordestinos quando precisam amedrontar possíveis malfeitores. Mas sem dúvida a maior semelhança entre o Céu de Pacheco e um sítio sertanejo é quando se manda, em ocasiões diferentes, ora que se “Arranque um pau do quintal”, ou ainda que se “Arranque um pau do chiqueiro”. Naturalmente que o bom homem que era o Pacheco só poderia imaginar a Fazenda Celsetial como semelhante aos sítios sertanejos de pessoas boas, cristãs e honestas que ele conhecia aqui na Terra. Concordo plenamente com ele!

O estrofe final nos deixa a entender que o presente cordel era cantado em feiras nordestinas, pois ali há a clara menção a um pedido de gorjeta aos espectadores. Eu mesmo já ouvi esse cordel ser cantado, de forma belíssima, numa feira em Patos, numa gravação dos Discos Marcus Pereira.

SOBRE O AUTOR:

José Pacheco.

Sinopse da vida e obra de um dos mestres do cordel.

José Pacheco da Rocha, ou José Pacheco, como é mais conhecido, nasceu no Município de Corrientes, em Pernambuco, residindo algum tempo na cidade de Caruaru, naquele mesmo estado. Viveu muitos anos em Maceió, Alagoas, vindo a falecer naquela cidade, provavelmente em 1954. Folhetos de sua autoria foram publicados pela Luzeiro Editora, de São Paulo. Recentemente, a Editora Queima-Bucha, de Mossoró (RN), publicou o folheto A intriga do cachorro com o gato. Além disso, há edições de suas obras pela Catavento, de Aracaju (SE); Lira Nordestina, de Juazeiro do Norte (CE); Coqueiro, de Recife (PE), e por outras editoras.

Seus folhetos mais conhecidos são:

História da princesa Rosamunda ou a morte do gigante e A chegada de Lampião no inferno e A intriga do cachorro com o gato. As histórias de gracejos são um dos aspectos marcantes dos cordéis de José Pacheco, considerado um dos maiores cordelistas satíricos do Brasil.

Porém, o poeta se dedicou ainda a outros temas, como histórias de bichos, religião e romances.”

Fonte: http://mateusbrandodesouza.blogspot.com.br/2011/02/jose-pacheco.html

Não consegui encontrar a data precisa do nascimento, nem do falecimento do poeta José Pacheco da Rocha.

O cordel em si, que foi reescrito por estar meio codificado e usar expressões muito antigas, ou mesmo com grafia equivocada, foi retirado do saite: http://www.jornaldepoesia.jor.br/pacheco.html

Bom, agora: Olhos à Obra!

Antônio Adriano de Medeiros

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O GRANDE DEBATE DE LAMPIÃO COM SÃO PEDRO

AUTOR: JOSÉ PACHECO DA ROCHA

Para me certificar
Da morte de Lampião
Arrumei o matulão
E andei pra me acabar.
Não escapou-me um lugar
Do Brasil ao Estrangeiro;
Percorri o mundo inteiro
Procurando a realeza
Até que tive a certeza
Da morte do Cangaceiro.

Andei nas Areias Gordas,
Pilão Sem Boca e Macumba;
As Ribeiras de Cazumba
Estas eu remexi todas.
Passei na Várzea das Poldras,
Fui á Baixa da Folia,
Levei uma companhia,
Deixei no Bico da Pata;
Passei nas Brechas da Gata,
Dormi na Boca da Jia.

Fui à Serra do Cambão,
Desci na jumenta prenha;
Mandei Chico Tomás Lenha
No Engenho de Felipão.
Pindoba de Damião
Fica perto da Furada
– Lá deixei um camarada,
Caminhei mais meia légua;
Dormi na Baixa da Égua,
Perto da Tábua Lascada.

Depois eu fui na Quinzanga,
O Engenho de Seu Melo.
Subi para o Birimbelo,
Cheguei na Chã da Munganga;
Três Cacetes de Zé Panga
Já fica do outro lado.
Fui ao Cambito Quebrado,
Do Rodete de Pinheiro.
Deixei o meu companheiro
Na bargada dum sevado.

Passei na Chã da Risada,
Desci na Fazenda Mole;
Fui à Usina do Fole
De Bertolina Pelada,
Segui pela mesma estrada
Do alto da geringonça.
Do Tapado do Mendonça
Puxei para virador
E mandei um portador
Dormir na Boca da Onça.

E atravessei os mares
Montado em um planeta
Que ao som de uma trombeta
Vinha descendo dos ares,
Visitando aqueles lares,

Terra de santos e fadas.

Naquela mesma jornada
Encostei no arrebol;
Cheguei na Terra do Sol,
Na Casa da Madrugada.

Ela me deu um abraço,
Me prestou-me bem atenção;
Mandou chamar o Verão
No Reino do Mestre Espaço.
Depois chegou o Mormaço
E saiu muito vexado
Porque estava ocupado
No palácio da manhã,
Tratando da sua irmã,

Mulher do vento gelado.

Continuei a viagem
Com boa capa de luva
Porque a terra é de chuva
E mora Dona Friagem.
Seu palácio era na margem
Do rio Maior Relento;
Descansei no aposento
Da velha seca puxada
– Nessa noite a trovoada
Deu uma surra no vento.

No reino da Branca Aurora
encontrei a brisa mansa
que vinha trazer lembrança
À princesa Deusa Flora.
A Neve àquela hora
Em sua alcova dormia
Depois o sol lhe surgia

Desfazer-lhe do regaço,
Enquanto pelo espaço
A neve branca corria.

Pra saber de Lampião
Qual foi a parada sua
Subi à terra da Lua
Escanchado num trovão.
Encontrei um ancião
Velho, barbado e corcundo
Que vinha do fim do mundo
Me viu e foi me contando
Que viu São Pedro açoitando
Um espírito vagabundo.
Chegou no céu, Lampião
A porta estava fechada,
Ele subiu a calçada
Ali bateu com a mão.
Ninguém lhe deu atenção
Ele tornou a bater.

Ouviu São Pedro dizer:
– “Demore-se lá. Quem é?
Estou tomando café
Depois vou lhe receber.”
São Pedro depois da janta

Gritou por Santa Zulmira:
– “Traz um cigarro caipira!”
Acendeu no de São Panta.
Apertou o nó da manta,
Vestiu a casaca e veio;

Abriu a porta do meio
Falando até agastado:
– “Triste do homem empregado
Que só lhe chega aperreio.”
Abriu na frente o portão
Ficou na trave escorado,
Branco da cor de um finado
Quando avistou Lampião.
Mas com a trave na mão
Não temeu de lhe falar
E disse: – “Aqui não se dá
Aposento a gente mal,
Senão que entrar no pau
Acho bom se retirar!”

Lampião lhe respondeu:
– “Não venha com seu insulto!
Você é um santo bruto:

Que ofensa lhe fiz eu?
E mesmo o céu não é seu
Você também é mandado…
Portanto esteja avisado:
Se não deixar eu entrar
Nós vamos experimentar
Quem é que tem bom guardado!”

  • “Você não entra, atrevido!”
    São Pedro lhe disse assim :
  • “Ingresso a quem é ruim
    Nesta porta é proibido.
    Não sabes que sois bandido
    Roubador da vida humana,
    Alma ferina e tirana
    Coração cruel, perverso!
    Como queres um ingresso
    Nesta mansão soberana?”

  • “É certo que fui bandido
    Perverso, estrompa, voraz,
    Porém, quem foi não é mais
    É mesmo que não ter sido…
    Mesmo eu sou garantido

Por um provérbio que tenho
Escrito sobre um desenho
Por pessoas elevadas,
O qual diz: – Águas passadas
Não dão volta a meu engenho.”

— “Não quero articulação
Você aqui nada tem.”
— “É como você também,”
Lhe respondeu Lampião:
“É porque do seu patrão
Você transmite um mandado,
Eu tenho visto empregado
Sair do trabalho expulso,
Sem direção, sem recurso
Por qualquer trabalho errado…”

Ali falou São Bernardo
Que também vinha chegando
– “Ô Pedro, ocê tá brincando
Com esse cabra safado?
Vá me chamar São Ricardo
E São Francisco da Penha;

Diga a São Tomé que venha
E chame São Juvenal,
Arranque um pau do quintal
E uma lasca de lenha!”

São Pedro ergueu-se nos pés
E disse de cara feia:
– “Pra dar num cabra de peia
Não precisa oito nem dez”
E gritou por São Moisés:
– “Vamos dar no bandoleiro!”
Saltou no meio do terreiro
Até preparar a faca,

Gritando: – “Quebra uma estaca!
Arranque um pau do chiqueiro!”
São Paulo estava na quinta
Mas ouvindo a discussáo

Apertou o cinturão
E botou a faca na cinta;
Encontrou Santa Jacinta

Que lá vinha no caminho,
E disse a Santo Agostinho
Arretorcendo o bigode:
– “Arréda que tu não pode:
Eu pego o cabra sozinho!”

Porém antes de pegar
Desceu um grande corisco
Jogado por São Francisco
Da porta do quarto andar;
Num tremendo ribombar
Um trovão também desceu,
O espaço escureceu
Veio um forte pé-de-vento,
Lampião neste momento
Dali desapareceu

Poeta tem liberdade
Sagrado dom da Natura
Conforme a literatura
Escreve o que tem vontade;
Também a propriedade
Precisa o dono ter,
Pelo menos vou dizer
– Se meu espírito não mente –

Poeta também é gente:
Também precisa comer.

José Pacheco da Rocha

♦♦♦

Antônio Adriano de Medeiros nasceu em Santa Luzia, na Paraíba. É médico, formado em João Pessoa, com especialização em Psiquiatria, no Rio de Janeiro. Publicou o “Soneto Para O Diabo”, na revista holandesa Sur, em 1995; os “7 Sonetos de Um Amor Muito Safado”, na Antologia Eros, Ed. Poesia Diária, 1999, participou de três Antologias de Escritas:-1, 2 , e 4. Publicou em 2000 o livro “Zoológico Fantástico”, Ed. Papel Virtual, revisado e no prelo para nova edição. Faleceu aos 49 anos, em 18 de novembro de 2012.

Nota da redação de Athena: fazemos questão, de em jeito de homenagem, deixar aqui o seu último poema e agradecer a Anna Merij, todo este conteúdo.

A DOR, A VIL DOR

A dor
a dourada dor
adoro-a
se duradoura.
Todas as Dorinhas são vulgares.

Prefiro as dores marcantes,
que não conhecíamos dantes,
dores agudas, inauditas, de mau agouro
– filhas da puta: a gente grita, ó tanto choro…

Toda dor que se preza
não deixa dúvida.
Precisa de reza,
exige um antídoto.

Além da química, ou fisioterapia,
a escrota quer música e poesia…

Dura alguns dias, dura semanas
essa dor que não se esquece,
pois, do que muito se padece,
a gente ama.

Os outros que se matem:
prefiro que me tratem!

Se morrer, que graça vai ter?
Quando de novo irei padecer?

Há uma dor que merece um andor.

Antônio Adriano de Medeiros