EDITORIAL POR JÚLIA MOURA LOPES – “Afastem de mim esse cálice”

“Com toda a lama, com
toda a trama, afinal, a gente vai levando essa chama”.

Chico Buarque

Neste Maio único e tardio, Francisco Buarque de Hollanda, poeta-músico tão nosso, cronista dramaturgo da “Ópera do Malandro”,  romancista e ainda actor, homem lindo, que tão bem exterioriza o eu feminino, foi distinguido com o Prémio Camões”, o maior troféu literário da nossa língua.

Está reacendida a questão iniciada com o Nobel a Bob Dylan, sobre o conceito canónico de Poesia. Como se pode pretender que a poesia escrita seja superior à cantada, quando sabemos que a mesma teve  inicio exactamente na tradição trovadoresca?

*Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno

Além desta polémica, o Prémio Camões 2019 vê-se no epicentro de outra polémica bem mais feia. Os simpatizantes de Bolsonaro  acusam a escolha de Chico Buarque, denunciando ver nela uma mensagem implícita de  conotação política.

Ora, esta acusação inferioriza o talento de Francisco Buarque de Hollanda, coloca em causa a idoneidade do júri, que é bom lembrar,  é composto pelos ilustres:

Clara Rowland e Manuel Frias Martins, indicados pelo Ministério português da Cultura, pelos brasileiros António Cícero Correia Lima e António Carlos Hohlfeldt, pela poeta e professora dos meus gostares, a angolana Ana Paula Tavares e pelo professor moçambicano Nataniel Ngomane.

Reduzir o Prémio Camões 2019 a uma intrinseca mensagem política, é querer diminuir a genialidade de Chico Buarque, é desmerecer o seu talento, é privá-lo da liberdade de ser o artesão da palavra exímio, que ele sempre foi.

*Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

Lembro que o talento de Chico Buarque esteve ao serviço da liberdade, em tempos de ditadura, suando metáforas, inventando códigos nas entrelinhas. O seu talento, levou a que muitos da minha geração, pedissem, obviamente em jeito de brincadeira, que houvesse mais ditaduras, para aguçar o engenho na arte de bem escrever, como Chico Buarque  o fazia, à boa maneira de Chico.

AFASTEM ESSE CÁLICE DE CHICO BUARQUE, DE VINHO TINTO DE SANGUE

Seria caso para ter pedido aos deuses lá do Olimpo,  já que na terra nos homens eu já não creio, que adiassem um pouco o Prémio Camões 2019. Talvez esse adiamento favorecesse o olhar sobre a obra literária de Francisco Buarque de Hollanda e esta pudesse apenas ser apreciada, degustada como bom vinho, ficando assim  claro o quão grandíloquo é  o seu valor, mesmo aos setenta e quatro anos.

Não resisto fazer o paralelismo com o escritor Louis Ferdinand Celine, um dos autores rotulado entre os malditos, que me fascinou com o livro “Morte a Crédito”, mas cuja obra mais conhecida é a recentemente reeditada “Viagem ao Fim da Noite”, que não li. Pergunto se será certo dizer que Celine passou a ser um mau escritor, quando se revelou um hediondo ser humano anti-semita? Pessoalmente, fiquei triste, mas continuo a recomendar o livro.

Senhores, não ousem falar do mau feitio de Eugénio de Andrade, quando honestamente reconhecerem que cada palavra de um verso seu é fogo, desamparo, noite escura….e também como cristal, dependendendo de quem as colher “nas suas conchas puras”.

Fomos entretanto, surpreendidos pela partida de Agustina Bessa Luís.

Já o referi, não sou, nem nunca fui apreciadora da obra de Agustina, embora lhe reconheça inteligência e alguns laivos de genialidade (misturados com muita maldade).

 Esta que vos escreve estas linhas, não conseguiu ler até ao fim a “A Sibilia”, considerada a sua obra-prima. Não tenho problema algum admiti-lo que deverá ser culpa minha, pois que me lembre, livro dela, apenas li até ao final, a Fanny Owen, porque me prendeu ao contexto histórico e ao cenário, que me era familiar. Tenho o hábito de apenas ler o que me dá prazer.

Não me tendo cativado como leitora e não a admirando como pessoa, não me encontro de luto, que acho excessivo EM TODA A SUA EXPRESSÃO,  sendo para cúmulo, com duração de dois dias.

“Depois de tudo, escrever é um pouco corrigir a fortuna, que é cega, com um júbilo da Natureza, que é precavida.” Agustina Bessa-Luís

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Que a partida de Agustina e o Prémio Camões ensombrado, não nos estrague a festa, porque Athena  vibra,  rejubila e festeja o seu 2º aniversário!

Recordamos que a REVISTA ATHENA iniciou o seu caminho com uma Edição Zero, em Maio de 2017 e não precisamos convencer-vos que este percurso se esfumaria no tempo, se não passassem por aqui os excelentes colaboradores, pensadores, poetas e artistas. Sabemos igualmente que a sua existência seria também infrutífera sem os seus leitores, que hoje abrangem toda a América latina e alguns países da Europa.

Celebremos Athena, que se foi definindo como Revista literária. Não deixamos de aludir a sua previsível e lamentável perenidade,  pelo destino inevitável das Revistas digitais, que é efémero, todos sabemos e  se esfuma de forma tão fácil, em  apenas um click,  nos bytes do esquecimento.

Não é por acaso que cada vez é mais frequente a literatura digital se aliar à tradição impressa, sendo  o contrário também frequente. Athena ser Digital não diminui em nada a qualidade da nossa literatura. Somos interactivos, livres e abrimos caminhos.

…Prometemos não esquecer este fragmento que tomaremos por máxima:

” Quando lês, tens sempre dois macacos diante de ti: o teu e o de um outro. Ou ainda pior, um macaco e uma hiena. Vê lá o que darás para alimentar a um e a outro. Pois a hiena não come a mesma coisa que o macaco.” (Milrod Pavitch, in Dicionário Kasar)

Lá em cima, Mário Cesariny de Vasconcelos diz-nos  que a “Torre de Pisa vai cair”.

 

*A canção  “Cálice”  é uma co-autoria de Chico Buarque e Gilberto Gil

 

Júlia Moura Lopes
DIRECTORA E EDITORA DE ATHENA