(leia a I PARTE aqui )
Enquanto Freud aguardava um novo século para inaugurar seu feito, as artes ebuliam com as experimentações impressionistas ao ar livre. O Expressionismo não retratava a realidade objetiva, como os impressionistas, porque não mais admitia a realidade como leitmotiv mas a interioridade humana com suas emoções, incertezas e mistérios. Denunciava a injustiça social, mostrava os vícios humanos em formas retorcidas com a violência de tubos diretamente aplicados sobre as telas, em impastos vigorosos. A infância da Psicanálise ocorreu nesse fértil terreno transitivo, quando a incógnita alimentava uma nova era de velozes transformações que a arte se incumbiu de registrar. Arte a que Adolf Hitler (1889/1945), depois, chamaria de degenerada.
A emergência de novos meios de comunicação de massa, a industrialização invadindo casas com as mais recentes invenções da tecnologia doméstica. O cinema constituindo mitos mudos, a Bauhaus simplificando o mobiliário, matematizando a arquitetura e trazendo os estudos da Ergonomia para ajustar o conforto às funções práticas do trabalho, das vivendas, dos lugares. A dúvida levou Freud a reinterpretar Michelangelo. Depois de inúmeras visitas à Igreja San Pietro in Vincoli, em Roma interpretou a soberba escultura do “Moisés” supondo as intenções de movimentos possíveis na escultura do personagem bíblico. Permitiui-se entrar na estrutura psíquica do mesmo para fazer o mapeamento do tempo representado na obra em sua relação com a narrativa bíblica;
A medida que nossos olhos percorrem a estátua de cima para baixo, a figura apresenta três estados emocionais distintos. As linhas do rosto refletem os sentimentos que predominaram: o meio da figura mostra os traços do movimento reprimido; e o pé ainda permanece na atitude de ação projetada. É como se a influência controladora houvesse avançado de cima para baixo. Nenhuma menção se faz até agora ao braço esquerdo e ele parece solicitar uma parte em nossa interpretação. A mão repousa no corpo num gesto suave e segura como numa carícia a extremidade da barba que flui. É como e ele quisesse neutralizar a violência com que a outra mão havia maltratado a barba alguns instantes antes. (1997)
O Moisés uma imagem ilustrativa do nexo humanita em apogeu no Século XV, quando duas eras foram demarcadas. As velhas certezas seculares perpetradas pela Igreja como simbolismo repressor para a administração da maior parte do mundo então conhecido, entrava em colapso com as certezas científicas indubitáveis. A terra se expandia com a descoberta de mundos inimagináveis, onde índios eram felizes em estado de natureza mesmo desconhecendo Deus e as liturgias cristãs.
Martinho Luthero (1483/1546) lançou o primeiro cisma cristão negando o fausto das indulgências, cujo ouro abastecia palácios episcopais. Um novo continente que liga o polo Norte ao Sul acabava de ser descoberto: os tipos móveis de Johannes Gutenberg (1398/1468) popularizavam a bíblia, traduzida para o alemão. As antigas certezas esvaiam-se em dúvidas na medida em que o homem era entronizado como realidade para aconvergência de todos os saberes. Se a Teologia foi a ciência da Idade Média, o Humanismo tornou-se a certeza na Renascença.
Erasmo de Rotterdam (1466/1536) fez de seu Elogio da Loucura uma crítica à prática deletéria de potentados hipócritas, sexualizados representantes do clero, desmandos da justiça tendo a insensatez como diapasão. Um novo ser elevava-se do Período das Trevas mostrando os dentes da razoabilidade. O inconsciente permanecia ignoto em sua abissal estatura da atividade mental, e só se revelaria como gérmen a interioridade humana, quatrocentos anos depois, em 1900. Com todas essas evidências, abstrata e estruturalmente a cultura continua validada pela religião, antídoto para a alteridade, segunda natureza do mundo humano, chato, maçante e com pouca esperança em todas as suas instâncias. Em O Futuro de Uma Ilusão Freud cuida do desamparo, da sensação de insegurança e da falta de proteção humana frente à natureza indômita e o seu semelhante. Entende a religião como uma ilusão com raízes densas no psiquismo humano atuando como anteparo de defesa frente a crueza das relações sociais que ofereciam Deus como supremo protetor, capaz de aliviar tensões e consolar no medo. Se o pai supre o filho de segurança e afeto, então Deus serve ao homem como pai. O Moisés de Michelangelo é o pai dos judeus e, enquanto criação, fruto de uma mente miraculosa, gestada em tempos da sublevação renascentista frente à pertinaz presença do divino como horizonte de todo o saber. Mas como chegar à verdade científica se o resultado de qualquer investigação só poderia servir para referendar os evangelhos? O Humanismo tornou-se a ciência que deu início à Idade Moderna, substituindo a Teologia de mesma função. Deslocando Deus da cena cotidiana, foi colocado definitivamente na abstração do céu já conhecido e sem superstições. Com a prova do Heliocentrismo, Nicolau Copérnico (1473/143) invalidou a teoria de Ptolomeu (100/ 168 d. C.) de que a terra era o centro do sistema interplanetário onde habita o homem. Outro golpe no clássico dito cristão de que, se o homem é a maior criação de Deus jamais poderia estar em um planeta de segunda grandeza, como a terra. Galileu Galilei (1564-1642) foi obrigado a abjurar de suas descobertas, o que fez em praça pública. Mas a certeza da astronomia que auxiliava marinheiros em novas rotas maritimas, para aportar em mundos indizíveis, o fez continar abraçado às suas convicções científicas. De seu contemporâneo, Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) é O Êxtase de Santa Tereza. Uma virgem miraculosa, beatificada, reverberando eros em estado puro por todas as dobras da mármore, dedos distendidos, calor de corpo aquecido por outro, os panejamentos em repetidas pregas antecipando a teatralidade, o exagero e a sensualidade barroca. Sua obra é a pura qualidade de um gemido sufocado de desejo em curso, místico enlevo na experiência de arrebatamento. Um anjo a contempla complacente portando o dardo de um cupido ausente. Um gozo egoico transcende no silêncio acolhedor da Igreja de Santa Maria della Vittoria em Roma, onde sagrado e profano se irmanam na liberdade plena da arte.
Embora tocado pela arte clássica que na Renascença parecia tanger a manada em tropel, o tempo de Freud foi o da outras emergências estéticas, ideológicamente assemelhadas. A arte moderna sua contemporânea vinha com urgência transformadora. Seu tempo também foi o de adulterações nos espelhos que refletiam o homem do Século XX. Os artistas advogavam o fim do estilo, a negação das academias, autonomia criativa, o fim do modelo mimético adotado desde a Renascença e a abolição das convenções criativas. Os Impressionistas queriam representar o movimento, o instante, a fugacidade e a luz sob a alegação de que os olhos são o reino da reconstrução narrativa do quadro. Negavam a cor como realidade permanente, como tinha Leonardo da Vinci (1452/1519). Para provar a relatividade na percepção ocular, Claude Monet (1840/1926) pintou a Catedral de Ruen em diferente telas, em diferentes horários do dia. O resultado demonstou que impermanênia tonal da luz produziu, a partir da visão do artista, o registro do mesmo motivo em diferentes colorações. A percepção ocular na retina deixou de ser absoluta para se relativizar, como o homem lido em seu ecletismo pela Psicanálise qque se avizinhava. O químico belga Michel Éugéne Chevréul (1786/1889) publicou De la Loi du Contrast Simultané des Couleurs atestando que
O contraste simultâneo é uma conseqüência do trabalho do olho pela busca de equilíbrio. Ele ocorre sempre que o olho é sensiblizado por uma cor. A partir desse instante, o olho procura o tom complementar a essa cor, para que esses tons se anulem e ele possa voltar ao seu estado de equilíbrio inicial. Quando o olho encontra esse tom complementar e consegue se anular, consegue-se a famosa “harmonia cromática”.
Não mais certezas. Arthur Rimbaud (1854/1891) coloriu as vogais e, a partir de então a poesia nunca seria a mesma.
VOYELLES
A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles,
Je dirai quelque jour vos naissances latentes :
A, noir corset velu des mouches éclatantes
Qui bombinent autour des puanteurs cruelles,
Golfes d’ombre; E, candeurs des vapeurs et des tentes,
Lances des glaciers fiers, rois blancs, frissons d’ombelles;
I, pourpres, sang craché, rire des lêvres belles
Dans la colère ou les ivresses pénitentes;
U, cycles, vibrements divins des mers virides,
Paix des pâtis semés d’animaux, paix des rides
Que l’alchimie imprime aux grands fronts studieux ;
O, suprême Clairon plein des strideurs étranges,
Silences traversés des Mondes et des Anges :
– O l’Oméga, rayon violet de Ses Yeux !
VOGAIS
A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul: vogais,
Eu direi algum dia seus natais latentes:
A, negro corpete de moscas reluzentes
Que zombem ao redor de odores lamaçais,
Ilhas sombrias; E, alvor de tendas e ares,
Lanças de gelo, reis brancos, frisson de umbelas;
I, sangue escarrado, riso de bocas belas
Em cólera ou penitência ébria nos bares;
U, ciclos, divino vibrar do verde mar,
Paz dos campos semeados, paz do enrugar
Que a alquimia marca na testa de homens sóbrios;
O, sumo Clarim de estridentes desarranjos,
Silêncios trespassados de Mundos e Anjos:
– Ó, Ômega, raio violeta em Seus Olhos!
[*] Tradução de Tomaz Fernandes Izabel.
Expressionistas optaram pela loucura como tema, retrataram os excluídos pelo vício, pela miséria, pelo pecado, contradizendo a prática das escolas oficiais. Só há espaço para a luta de um novo homem livre de interditos da cultura e da educação. Enquanto Freud aguardava um novo século para inaugurar seu feito, as artes ebuliam com as experimentações. Logo os Fovistas, os Cubistas, o Futurismo de Filippo Tommaso Marinetti (1876/1944). E a Psicanálise ecoou potente no pesadelo dadaísta, servindo como especial base tepórica para o Surrealismo, movimento literário e artístico proposto em 1924 por André Breton (1896/1966). Caracterizava-se pela expressão de instintos, pelo automatismo do pensamento ditado pelo inconsciente, fundado na aparente incoerência, afiançada pelo império do sonho.
Seu tempo foi de revoluções pensamentais. Albert Einsein (1879/1955) relativizou o cosmos, Karl Marx (1818/1883) produziu sua descomunal Teoria, partindo da prática para chegar à teorização, algo inédito desde o idealismo platônico com sua poética fluidez idealista. Mihail Bakhunin (1814/1876) propôs o fim das instituições que sustentam a ordem coletiva humana. Família, escola, governo e propriedade não mais. Apenas um novo homem livre de interditos da cultura e da educação. O homem do inconsciente. O homem do sonho revelador.
É de se perguntar: Se Freud não houvesse existido não existiria a Psicanálise? Provavelmente sim, considerando-se esse ambiente cultural transformando definitivamente a política, a sociedade, os hábitos; iniciando a era da comunicação de massa. As experimentações e os estudos de Jean Martin Charcot (1825/1893) abriram-lhe um caminho sem volta. Mas nada é seguro. A grande criação de Freud foi ele mesmo.
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Jorge Antônio da Silva – Jornalista, Psicanalista, Crítico de artes e curador. Mestre e Doutor em artes pela PUC-SP. Membro associado á APCA Associação Paulista de Críticos de Artes. Autor de Arte e Loucura, Arthur Bispo do Rosário (EDUC/FAPESP), O Fragmento e a Síntese (Editora Perspectiva), Naïve Painters Brazil (Empresa das Artes), Wega Nery (Pantemporâneo), Jornalismo Cultural: Apontamentos, Resenhas e Críticas em Artes Plásticas (Pantemporâneo), Enriquestuardoalvarez (Trama Editorial / Quito / Ecuador). Consultor ad hoc da FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo. Docente no curso de Letras, Artes e Mediação Cultual da UNILA – Universidade Federal da Integração Latino Americana. Docente permanente no Programa de Pós Graduação do Instituto de Integração Contemporânea da América Latina – ICAL.
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