Nosso velho tio Alfredo Nunes era tenente do exército. Depois de reformado, sempre que nos visitava, dizia dos acontecidos no tempo de quartel. Gostávamos de ouvir das manobras e dos exercícios de guerra. Nosso tio Alfredo era uma espécie de herói familiar. Ficávamos ao redor dele. Depois de uma cerveja que outra, desenrolava a língua. Já conhecíamos todas as histórias que o tio Alfredo poderia contar. Fazíamos reparos quando ele tropeçava num exagero que outro. Uma história nosso velho tio Alfredo repetia mais que as outras.
— Já contei do soldado Demétrio?
Sim, já havia contado. Várias vezes. Mas fazíamos um coro de expressões curiosas; era o nosso código silencioso de vamos adiante ou em frente marche. Naquelas conversas de quando o domingo desabava contra a tarde morna, soubemos que Demétrio teria dezoito anos, na época. Usava uns óculos de lente grossa e tinha um jeito delicado. Era uma pessoa decente e tio Alfredo falava bem dele. Nós chamávamos tio Alfredo de tenente, para brincar com ele. Mas ele gostava. Não atendia o telefone, dizendo alô. Falava assim: Tenente Nunes, e depois dizia o número. Devia ser algum hábito do quartel. Não sei. Mas o Demétrio morreu porque o cabo de instrução física exagerou com ele. Estava na ficha do Demétrio um carimbo vermelho escrito: Poupado. Isso equivalia a dizer que esse tipo de soldado não seria submetido ao mesmo ritmo de preparação que o restante da tropa. Essa parte, nosso querido tio tenente nos explicava sempre do mesmo jeito. E o cabo encarregado não viu ou fez que não viu. O Demétrio na tarde anterior andou se exibindo com uns conhecimentos. O rapazote gostava de ler e acabou ganhando uma discussão com o tal cabo sobre a diferença do lobo e do chacal. Antes a tivesse perdido. No outro dia de manhã, o cabo resolveu que o Demétrio fizesse sei lá quantos abdominais e mais outros tantos apoios. Nosso velho tio quando nos contava essa parte, começava a encher os olhos de água. A partir daí a narrativa nos fazia engolir em seco, trancar a respiração. Às vezes o nosso tenente encerrava o relato nesse ponto e ia beber cerveja. Ele era amigo do Demétrio, sem dúvida. Quando o coitado estava já no abdominal número oitenta ou noventa, começou a ficar com os dedos azulados. Teria dito ainda alguma coisa como por favor, cabo, estou passando mal. O cabo riu e chamou o Demétrio de veadinho cansado. Ele tentou então mais alguns abdominais até que ficou deitado com os lábios ficando roxos e depois a cara toda ficando roxa. Bateram no peito dele, tentaram reavivar o pobre, mas já era tarde. O coração do Demétrio estourou por dentro, pelo menos foi o que eu entendi. Houve correria e depois ficou tudo em silêncio do quartel. Tudo quieto. Lá em casa nós decidimos que cabo não era boa gente. Bom é de sargento em diante. E nos orgulhamos do nosso tio Alfredo: oficial do exército.
Mas hoje um primo veio dizendo que, na ocasião da morte do Demétrio, o nosso tio ainda não era tenente nem sargento.
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Jaime Vaz Brasil – Poeta gaúcho, com 7 livros públicados e vários prêmios, dentre os quais: Açorianos, Felipe d’Oliveira e Casa de Las Americas (finalista). Atua também como compositor, tendo vários poemas musicados e interpretados por vários parceiros, dentre os quais Ricardo Freire, Flávio Brasil, Zé Alexandre Gomes, Nilton Júnior, Vitor Ramil e Pery Souza.
Jaime obrigada por tornar este mundo melhor,com teus poemas, contos e tua presença inteligente e amiga entre nós
INArmando RibeiroTERESSANTE. Gostei, continuarei lendo e recomendá-lo-ei. Parabéns.
M UITÍSSIMOINTERESSANTE.
Gostei , continuarei lendo e ainda o recomendarei.
Armando Ribeiro
http://www.aresemares.com
O tio Alfredo era o Cabo
Como tudo que o Jaime Vaz Brasil escreve, esse conto é uma delicia.
Baita texto. Porrada.