A caminho da sexta década da existência temporal, o Paulo Lúcio fechou os olhos, cerrou os ouvidos, os pulmões deixaram de arfar e o coração parou de bater. A experiência chegou ao fim. Não sabemos de onde vimos, nem para onde vamos, mas a tremenda simplicidade do ser humano que se multiplica numa torrente de improbabilidades contínuas em um ambiente tão adverso é, para mim, um indicador que nesta dimensão, apenas passamos uma parte daquilo que realmente somos. Com a morte, ultrapassamos a estranheza deste lugar que nos acolhe sem sabermos porquê nem para quê!
Conheci o Paulo Lúcio há mais de trinta anos quando ambos frequentávamos a Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Começamos a ser amigos nas salas de cinema, e só depois nos cafés. Eu trabalhava e estudava para aumentar a cultura e o saber nas áreas que me cativavam; as humanidades e as artes.
Na altura ainda havia todos os anos uma dezena de produções cinematográficas que valia a pena ver, a que se acrescentavam diversas reposições. Pelos meus afazeres e para não as perder, tinha que aproveitar as matinés. Percorria por isso, a quase totalidade das salas de cinema nas tardes de um qualquer dia de semana e quando estava sentado à espera que as luzes se apagassem e a sessão tivesse início, era frequente entrar, sem qualquer combinação, o Paulo Lúcio.
E do cinema vinham as conversas acerca do que interessava a ambos: poesia, música, literatura, filosofia. Cavaqueira sobre estes assuntos a partir do que os autores faziam. Nunca o habitual diálogo sobre o que este ou aquele, o que neste programa televisivo ou página de crítica se diz e escreve sobre o assunto. Ambos detestávamos a critica e a fraca qualidade que a mesma apresenta, porque sabíamos que uma boa parte dela é retomada, com breves adaptações, das revistas internacionais da especialidade que por cá são pouco conhecidas, como, no caso do cinema, os prestigiados Cahiers du Cinéma.
Era nesse espírito que bebíamos frequentemente uns copos, em grupo mais alargado, aqui e ali, e, num período de tempo, em casa dele que prolongávamos depois da jantarada simpaticamente servidos por ele e a sua companheira da altura, a Céu, a que se juntava a pequena criança de ambos, a Ana. Elas iam dormir que se fazia tarde. Nós continuávamos a noite entre copos, livros e música. A criança que veio depois, a Catarina, só a conheci em mais um acaso, anos mais tarde, num berreiro com a irmã e os pais num dia quente de agosto amenizado pelo estacionamento refrigerado de um centro comercial.
O Paulo Lúcio adorava ler textos à sorte que compunham um lote restrito de preferências, dentre os muitos que se encontravam espalhados pela mesa, e lia bem. Mas também lia aquilo que escrevia, ele e os restantes convivas. Na altura pouco ou quase nada cada um de nós tinha ainda publicado. Eu viria a publicar mais tarde, o Paulo só agora, por insistência minha e cumplicidade da Júlia Moura Lopes, diretora da Athena, que infelizmente não teve oportunidade de o conhecer, mas que admirava a sua escrita e o seu traço. Desse deslumbramento, ainda brinquei com ele e senti a ironia das palavras que ele sabia que eu apreciava. Dizia-me que eu era um bom tipo e tinha sorte em encontrar pessoas solícitas e amáveis como a Júlia. E eu dizia-lhe que tínhamos uns copos, os três, em divida uns aos outros que, agora, jamais serão retribuídos. Ele traçava com as suas palavras um círculo em torno de si mesmo, das suas e nossas circunstâncias. Já pelo fim, confiou-me um volume inacabado dos seus textos, que espero, com a conivência e bondade da Júlia, pulicar na íntegra.
Fomos sempre amigos especiais, como são os outros poucos que ainda me restam. Conhecemo-nos, convivemos durante anos, fomos cúmplices de umas coisas e de outras. Estivemos sem nos ver e comunicar muitos anos. Encontrávamo-nos quase por acaso, intermitentemente, para ultimamente estarmos mais vezes próximos e aproximados.
Neste tempo, já recordávamos muito mas voltávamos ao comentário do que conhecia bem, nomeadamente a Beat Generation do Jack Kerouac, William S. Burroughs, Allen Ginsberg. Há pouco tempo tínhamos tido, quando entre as pandemias jantamos e lhe levei o ensaio que tinha publicado acerca da morte e do morrer, voltado ao tema da estrada fora, agora um pouco fora da estrada, ou daquela pela qual íamos caminhando. E já bem por uma noite dentro, depois de ter estado a conversar com outro amigo, o Zé Vasconcelos, a propósito do filme Contos da loucura normal de Marco Ferreri, mesmo que o assunto que detinha o fio da conversa fosse a atriz que o protagonizava a bela Ornella Muti. Na verdade, não conseguia identificar nem o filme nem a obra em que se baseava. Para satisfazer a minha ignorância, em vez de perguntar ao Google resolvi ligar ao Paulo Lúcio e estivemos várias horas pela noite dentro, a trocar impressões sobre esse e outros filmes que tão bem conhecia e as obras em que se baseavam, no caso em apreço, Histórias de Loucura normal de Charles Bukowski, autor que o tinha influenciado, na escrita e na vida.
Outras vezes ligava-lhe quando passava por qualquer lugar que ambos tínhamos pisado e costumava atender numa serra qualquer onde descansava o corpo e o olhar, ou algures, junto a uma cozinha onde ultimava uns petiscos para a seguir os partilhar tranquilamente com alguém especial.
E era assim entre nós: conversa inútil sobre coisas fúteis. Sempre com a sua ironia provocante para manter o fio do tempo bem esticado entre todos os momentos, os que passaram e os que se desejavam, plasmado no único tempo que interessa, o presente de então.
Agora o Paulo Lúcio passou a habitar outra dimensão. Melhor, pior, igual, assim, assim, só ele saberá. Como refiro e tendo a acreditar porque de facto sou crente, a eternidade pode ter que ver com as coisas terrenas, mas não é espectável que uns e outros se encontrem tal qual se anuncia.
Por cá somos imortais enquanto formos recordados. Em outras dimensões nada sabemos e com certeza não seremos tal qual aquilo que por aqui fomos. Querido amigo, quando te digo até sempre, é mesmo isso, porque a conversa acabou e não voltaremos a habitar os mesmos lugares na companhia um do outro. E suspeito que na eternidade não nos reconheceremos porque por aqui vemos em espelho e na perpetuidade face a face. Mas o que isso realmente significa, por agora, só tu é que sabes!
♦♦♦
Artur Manso, nasceu nos idos de 1964, pelo outono, ao cair das folhas, na aldeia transmontana de Izeda. Professor universitário que ao longo do tempo se tem dedicado à aprendizagem e ao ensino de pequenas coisas sob o signo da estética e da ética, do lugar que nos cabe no mundo e de como a beleza nos pode tranquilizar.
You must be logged in to post a comment.