DO BOM USO DA LIBERDADE – EDITORIAL DE PAULO FERREIRA DA CUNHA

 

“Le temps des cerises”, aguarela de Paulo Ferreira da Cunha

DO BOM USO DA LIBERDADE

I

O que fazemos, fazemo-lo na nossa circunstância, como bem observou Ortega y Gasset, e passou a ser muito repetido, só que, erradamente, no plural, e por vezes até julgando que Ortega é uma pessoa e Gasset uma outra. Coisas da nossa ignorância letrada…

Falemos, assim, de alguns constrangimentos, ou, se preferirmos, regras do jogo humano (social), ainda que possam algumas ser trans sociais.

Personagens tão diferentes como Montesquieu e Gobineau falaram, cada um à sua maneira, da importância do clima. Não é hoje uma moda, é realmente uma determinante essencial – para que muitos estão a acordar já tarde. Geoffrey Parker, autor de Global Crisis (Yale Univ. Press, 2013), em recente entrevista   a “L’Histoire” (n.º 516, fev. 2014), profere esta frase lapidar: “é o clima que faz duma crise uma catástrofe”, assinalando importantes exemplos históricos que nos passaram despercebidos a todos. Se quisermos alargar a “circunstância” da radicação num lugar, recordemos o título eloquente de Yves Lacoste, A Geografia serve fundamentalmente para fazer a guerra. Continuar a ler “DO BOM USO DA LIBERDADE – EDITORIAL DE PAULO FERREIRA DA CUNHA”

DALI E A “TENTAÇÃO DE SANTO ANTÃO” – por Rosa Sampaio Torres

Dali e seu quadro “Tentação de Santo Antão”

 

Uma experiência de viagem especialmente marcante para mim foram visitas às casas que o pintor Salvador Dali possuiu próximo de Barcelona: seu museu em Figureis, a casa de praia em Port Lligat, e o “castelo” de Pujol do sec. XI comprado para sua mulher. Gala – por ele próprio restaurado e decorado. Continuar a ler “DALI E A “TENTAÇÃO DE SANTO ANTÃO” – por Rosa Sampaio Torres”

SERÁ A LIBERDADE UM VALOR ABSOLUTO E INQUESTIONÁVEL? – por Ricardo Amorim Pereira

 

Aproximamo-nos da come- moração da passagem dos cinquenta anos da Revolução dos Cravos. Volvido meio século sobre o fim do regime autoritário do Estado Novo, por todo o mundo vem aumentando o temor, mais ou menos justificado, de que forças antidemocráticas possam regressar ao poder.

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DA PERMANÊNCIA E DA ESPERANÇA – por Maria Toscano

 

Soneto de AVISO à Morte, tão indesejada quão real
[nesta semana em que me morreram 4 queridos]:

Morte respeitável, aqui e agora,
solenemente, enquanto lavo o rosto,
declaro-te que tirei esta semana
para acatar as tuas precisões.

É verdade que, tu, tens desvantagem
se compararmos a duração do viver
e o tão mínimo e imprevisto tempo
que basta para te manteres activa.
.
Nem sempre são muito próximos nem íntimos
Os que levas, forças ou libertas.
No afã de confirmares tua presença
.
Marcas a fronteira entre o que é e foi,
Desenhas e apartas más de recordações boas
E, sem quereres, aumentas o valor da mera vida.
.
Figueira da Foz, 10 Jan 2024. Continuar a ler “DA PERMANÊNCIA E DA ESPERANÇA – por Maria Toscano”

A POESIA – de Maria Joanna Santos

O VESTIDO BRANCO

Noite passada, eu sonhei com a pureza em forma de vestimenta. Acordei e lá estava, o vestido branco que embevecia quem o visse. O vestido ao qual refiro-me é curto mas modesto, ele espraia candura sobre a curva carnal dos meu ombros, santifica o ser que se sacrifica, e sob a luz do sol de estio lembra o tule de um dossel. O vesti e pela primeira vez pude sentir o gosto adocicado da cor branca, a cor que deliquesce e se esparge languidamente sobre o meu corpo como o leite derramado em um chá servido em uma xícara de porcelana. O vestido é branco como a neve, adornado com fitas de cetim e possui uma anágua de renda que cobre a pele como uma mortalha. Saí do exílio em meu quarto —, a minha fortaleza com aroma de lavanda, o aposento onde durmo plácida em leito celeste e sou assombrada pelo meu próprio reflexo no espelho d’água, e fui de encontro à floresta enveredar o caminho de terra que levou-me às criaturas que vivem ali. Simultaneamente encantada e intimidada pela beleza feérica do lugar, fui impelida diretamente para uma nova espécie de exílio. As flores brotavam timoratas e os pássaros chilreavam baixo quando eu passava. De repente, olhei para baixo e notei que o vestido outrora imaculado estava eivado de sangue como as palavras sagradas de uma litania escrita em papel ebúrneo que fora manchado de vinho sacramental. Fui ingênua ao pensar que a pureza de um vestido branco se sobressairia sobre as nódoas da alma. Mas o ato de velar-me em branco fazia com que eu me sentisse capaz de derrotar a minha própria corruptibilidade ao invés de ser derrotada por ela. Antes mesmo de tê-lo, eu pensava em maneiras de preservar a alvura do vestido. Ele seria mantido no fundo de um baú, mas nunca ficaria empoado. O vestido ao qual refiro-me é branco como as penas de um cisne, uma pérola, um calcário ou um canteiro de lírios. Assim que o visto, ele suscita em mim o sentimento de afundar em um lago de pétalas de camélias brancas. Continuar a ler “A POESIA – de Maria Joanna Santos”

A LIBERDADE ARMADILHADA – por Manuel Igreja Cardoso

Num primeiro modo de pensar e de dizer, será certo que onde existe liberdade não pode haver armadilhas. Sendo a liberdade somente concreta quando não existem impedimentos ao seu germinar, as armadilhas são por natureza própria algo que prende e que impede.

Continuar a ler “A LIBERDADE ARMADILHADA – por Manuel Igreja Cardoso”

POEMAS – de Luiz Renato de Oliveira Périco

 

PNEUMATOLOGIA

rir é respirar
de um jeito diferente
o ar entra e sai
de outra forma da gente

inspiração expiração
mudam na mesma hora
respirar também muda
quando a gente chora Continuar a ler “POEMAS – de Luiz Renato de Oliveira Périco”

UMA NUANCE NAS NÓDOAS II – por Lucio Valium

Le temps menaçant by R. Magritte

  BLUES

Blues na cozinha. O som entrava pela garganta das botelhas amontoadas. Depois saí da hospedaria para vadiar. Fiquei algum tempo recostado na avenida central. A sala de visitas dos meninos de botão de punho. Gestores de sítios terrestres. Passei na estação. Havia gajos a tocar. Subi ruas estreitas de tascos e putas batidas. Sem rumo. A mente não escrevia. Indiferente, de olhos no chão, ia por vielas sujas lentamente. Ninguém interrompeu esse corpo invisível. Estava fora do ritmo. Temporal cardíaco. Um dia andou por aí um desterrado que caminhava. De regresso a esta mesa escrevi pequenos textos com palavras de outros. Um gozo o roubo de materiais sem proprietário. Nada de novo. Entretanto o mundo segue infetado de sangue e medicado com espetáculo. Infantil, mercantile, infame. Nas redondezas arrancam-se casas como dentes. Instalam-se implantes do negócio devorador. O confronto contínuo, sanguinário. Parcelas de chão para encher os cofres e despojar humanos. Vejo cada vez menos pessoas. Muitos foram-se embora. Vivemos o jogo da vida. Escolher o lugar onde deitar os ombros é escrever um tempo. Continuar a ler “UMA NUANCE NAS NÓDOAS II – por Lucio Valium”

MATRIOSKA E OUTROS POEMAS – de Kissyan Castro

MATRIOSKA

que vontade de me meter
outra vez no menino
despir o incêndio da idade
ser o desperdício de mim
em pés alheios

com a urina demarcar
o enigma do totem:
um circuito de cicuta
no beiço da memória

abrir em mim mesmo minha fuga
para dar de cara enfim
comigo Continuar a ler “MATRIOSKA E OUTROS POEMAS – de Kissyan Castro”

POEMAS INÉDITOS – de José Pérez

POEMA SEM GALINHA NEM FEIJÃO

Tradução de Anderson Braga Horta*

A panela
              nua e fria
esqueceu os caldos
o fumo da tarde
a lenha estalejante (o fátuo fogo)
verduras e sais

A mão que lavava sua pele
jaz vencida e prostrada
vazio adentro da casa solitária
os filhos muito longe
Chile Argentina Peru
Brasil Colômbia Equador

Chamam diáspora a esta solidão
eu a chamo vento derrota lágrima
fastio céu caído

Se algo deixou tristeza
caducidade
desamparo
foi o pranto da mãe
e esta panela vazia

As bananeiras do quintal são cicatrizes
do barranco
as folhas sem varrer
onde antes houve jogos de meninos

as aves de cercado e o louro
só deixaram penas na terra

algum sismo levou a alegria do lar
a inocência da criançada
o olhar de amor dessa mãe

algum punhal cortou sua língua
rasgou seus trapos
derrubou as gamelas de lavar
os talheres de pobre
as máquinas de costurar as calcinhas

algum alfinete espetou seus olhos ternos
apagando ilusões sonhos e esperanças
prostrada na velha cadeira de madeira
consumida nas poeiras da tarde

Ninguém semeia junto à casa os feijões
carreiras de milho
ou amores-perfeitos amarelos

As borboletas passam como fantasmas inocentes
alguém tosse e se apaga
enquanto as portas de outro mundo deixam cair
desvencilhados raios apontados ao paraíso

Depois das cinzas
resta apenas um poema
sem galinhas nem feijões
nem sóis à vista Continuar a ler “POEMAS INÉDITOS – de José Pérez”

POEMINHOS (91-100) – por Jaime Vaz Brasil

91.

O sabor não mora
na língua ou na fruta.

Nasce na hora
em que as duas

na gruta viva da boca
se encontram.

Nuas.

Continuar a ler “POEMINHOS (91-100) – por Jaime Vaz Brasil”

A CONFUSÃO DELIBERADA COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA – por Francisco Fuchs

 

Lula (a usar óculos de realidade virtual) e Chacrinha.

“Eu vim para confundir e não para explicar.” Esta frase, bordão de um dos mais célebres comunicadores da televisão brasileira no século XX (Abelardo Barbosa, o Chacrinha), desagradava-me profundamente quando eu tinha vinte e poucos anos. É compreensível, já que ela era a antítese de tudo que me era mais caro: pois eu, aspirante a filósofo, viera ao mundo para entender, e não há como entender sem desdobrar, desenvolver, desenrolar, ou seja, explicar.[1] A confusão era e continua sendo meu (seu, nosso) ponto de partida, mas nunca deixei de acreditar que ela pode ser, ainda que com muito esforço, reduzida; o que não significa negar ou apequenar a complexidade do real, mas passar, na medida do possível, da confusão original a algo semelhante a uma complicatio. Continuar a ler “A CONFUSÃO DELIBERADA COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA – por Francisco Fuchs”

“LOS EXTRAVIADOS” DE CLAUDIA VILA MOLINA – Reseña de Emilio Barraza Durán

 

LOS FANTASMAS Y SUS REFLEJOS EN

“LOS EXTRAVIADOS” DE CLAUDIA VILA MOLINA

Los Extraviados de Claudia Vila Molina es un libro que encierra la sutileza y la fascinación del mundo fantasmagórico. No se trata de textos de terror al más puro estilo gótico o romántico. Es algo más profundo que eso: son los fantasmas que todos llevamos dentro, esos seres que se niegan a desaparecer de nuestras vidas, seres que pinchan nuestras memorias y se distribuyen a lo largo de sus laberintos cotidianos. Continuar a ler ““LOS EXTRAVIADOS” DE CLAUDIA VILA MOLINA – Reseña de Emilio Barraza Durán”

A PEAU DOUCE DE UMA CAMÉLIA – por Danyel Guerra

 

Françoise Dorléac

“Suas entrevistas eram ricas em aforismos exigentes
sobre a vida e sobre o amor.”

François Truffaut

Joyeux anniversaire, Framboise!

Caminhava impetuoso para o fastígio o verão de 1967. Num dos primeiros dias do mês de julho, eu folheava um exemplar do Paris Match, que ganhara de um primo migrado em França. Era uma edição toldada pelos fumos negros do luto, nas páginas onde se reportava o desastre que vitimara uma bela e talentosa atriz dos novos tempos do Cinema francês. Uma atriz que eu não conhecia de Carnaval nenhum e muito menos de um filme. Pelas fotos da matéria, a extinta parecia ser uma pessoa pulsante de sangue bom, quente e latino. Aparentava ter sido, melhor escrevendo. Continuar a ler “A PEAU DOUCE DE UMA CAMÉLIA – por Danyel Guerra”

DAS INTERMITÊNCIAS DA INFÂNCIA – por Christian Dancini

UM POEMA INFANTE

Como era febril a brisa da manhã…
Aquele vento seco e gélido que raspava
meu rosto, difundia borboletas amarelas
nos pilares do amanhecer.
Eu sentia medo e frio, não conhecia
aquela escola e tinha apenas sete anos.
A tua loucura ébria me deixou confortável
para ser eu mesmo. Tua voz ruminava
nos meus pensamentos mais íntimos.
Era agosto, e o frio percorria a espinha.
Teu riso, teu corpo em movimento, tua pálida
razão… era como cavalgar um anjo, como existir
dentro do quasar do amor.
Tu foste meu anjo caído, loiro e pueril;
um naufrágio dentro do teu regaço agora
tece, ponta por ponta, os fios infinitos da memória.
Brincávamos de gangorra, de balanço, eu não estava
mais só, alguém me ouvia e me existia, me esperançava e
me imortalizava.
Sei que posso ser a sombra da tua sombra hoje, mesmo
que aqueles risos quentes tenham criado a nossa infância,
mesmo se pudéssemos voltar no tempo…
eu nunca mais me senti tão radiante, eu era capaz de
fruir pinheiros no lume dos colossos que residem nos céus.
Estojos, cadernos, trabalho em dupla, sonhos, adeus… Continuar a ler “DAS INTERMITÊNCIAS DA INFÂNCIA – por Christian Dancini”

TRÊS ANOTAÇÕES VAGAMENTE ERÓTICAS- por A. Sarmento Manso

TRÊS ANOTAÇÕES VAGAMENTE ERÓTICAS:

DE  D E S E J O –  DE  M A R – DE  V E R Ã O

para a AC

D E S E J O

Estão os dois sentados na areia junto ao mar. Ela entre as pernas dele encostada ao seu peito com os olhos semicerrados protegidos pelas lentes escuras a fitar o horizonte. A tranquilidade do mar é a mesma do seu corpo bem definido.

Ele acaricia esse corpo que tanto o atrai. Os caracóis fartos do cabelo dela afagam-lhe o rosto à medida da brisa que vai correndo. Os braços dele envolvem o seu corpo coberto com um leve vestido que deixa entrever uns seios bem proporcionados. As suas mãos descem pelo interior do tecido e suave e meigamente vão massajando essas sinuosidades de formato arredondado com movimentos leves e pausados, acariciando o bater lento de um coração descansado. Mamas bem proporcionadas, de dimensão certa e textura agradável. Os dedos das mãos, abrindo-se e fechando-se vagarosamente, demoram-se na auréola acastanhada dos mamilos que ocupa alguns centímetros e se eriça nuns biquinhos duros, pequenas setas de prazer que desejam romper para o infinito. Continuar a ler “TRÊS ANOTAÇÕES VAGAMENTE ERÓTICAS- por A. Sarmento Manso”