QUATRO POEMAS PELA AMÉRICA LATINA – por Rosa Sampaio Torres

I  QUANTAS VEZES SE MORRE

Para Moacir Armando Xavier

“Ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas vezes.” Frase de Maria de Magdala quando Jesus pretende  ressuscitar Lázaro.

(“O Evangelho segundo Jesus Cristo” – José Saramago)            

Quantas vezes
se morre
nesta vida,
com pecado
ou sem pecado? Continuar a ler “QUATRO POEMAS PELA AMÉRICA LATINA – por Rosa Sampaio Torres”

POEMAS E CENAS DE Zuca Sardan

PIRRAZZA

1 . VAPORETTO

Aviso aos navegantes o Vaporetto
partirá pra Cithera o Capitão
chama o cozinheiro chinês
o cozinheiro chinês chama o avestruz
o avestruz bota um ovo o chinês
parte o ovo traz um jornal o vento
venta o chinês faz da casca
o casco o chinês faz do jornal
a vela o Capitão reclama o chinês
faz do cachimbo do Capitão a cha-
miné o Vaporetto apita o vento
venta que venta que venta Continuar a ler “POEMAS E CENAS DE Zuca Sardan”

O POEMA E O POETA – por João Rasteiro






Nossa memória sempre foi 
a memória dos monstros 
nosso enigmático testamento

Casimiro de Brito



I

O poema nunca estará morto,
não é sequer poema,
a ilícita quimera desejada, o ouro
imperceptível e consumado,
“o problema não é meter o mundo
no poema”; vislumbrá-lo inteiro,
desinquieto em auroras claras,
em giestas de espera, e só assim
na breve treva a veracidade
que emana do canto dos pássaros
em disperso azul, em alforria,
lhe permitirá agarrar o seu trémulo
verso, a singular oblação da rosa. Continuar a ler “O POEMA E O POETA – por João Rasteiro”

TRIPÚDIO – por Luís Costa

Die Geburt des Dichters

Nunca pensei, sonhei ou desejei ser poeta
durante toda a minha juventude em vez dos livros ou da poesia
sempre preferi brincar aos índios e cowboys
ou assaltar ao meio da noite os laranjais
e os galinheiros dos vizinhos, ou ainda espreitar a vizinha,
quando esta se despia para fazer amor
e masturbar-me, masturbar-me (sim, sempre houve em mim
um gosto nato pela transgressão)

pergunto: poderá a fome de poesia ser explicada
cientificamente, será talvez uma herança genética?

que eu saiba entre os meus antepassados
nunca houve poetas, nem artistas, nem sequer homens cultos
houve, isso sim: assassinos, carrascos, esfoladores,
prostitutas, concubinas, mulheres obscuras e violentas
videntes, hipnotizadores de serpentes
também padres, mártires, santos e, sobretudo…
ah! sobretudo: loucos!

sim, entre os meus antepassados constam-se vários loucos
e confesso que também eu, por vezes, enlouqueço.

já passei alguns anos numa psiquiatria
porém todos os meus psiquiatras (foram muitos.
alguns deles suicidaram-se. outros enlouqueceram.)
dizem que a minha loucura é uma lúcida loucura.

vá lá saber-se o que é uma lúcida loucura,
mas talvez tenham razão, talvez a poesia seja um caso
de lúcida loucura.

English Garden

Aquele cadáver que plantaste o ano passado
no teu jardim já começou a despontar?
dará flor este ano?

                                                      T.S. Eliot

Foto de Paulo Burnay

Morreu no outono, um outono translúcido
como o da poesia de Trakl.

conforme o seu último desejo foi enterrado ao
canto mais belo
– onde crescem a rosas de Shakespeare –
do seu tão amado jardim,
o English Garden
onde costumava ler e escrever,
ler e escrever
até que os olhos lhe doessem de alegria.

enterraram-no com uma mão de fora
para que quando chegasse a primavera desse flor
e as andorinhas lhe cagassem em cima.

Realeza

Foto de Paulo Burnay

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
e chama-me teu filho
  Fernando Pessoa

O corpo (um odre de carne malcheiroso)
Mas ainda bem modelado

A ferida costurada
Os genitais encolhidos
O incenso subindo dos turíbulos
Aos brados

Assim lhe despiram a realeza
Assim regressou à noite antiga e calma.

La beauté

Je suis belle, ô mortels ! comme un rêve de pierre
Charles Baudelaire

Há uma tremenda beleza naquelas mãos grandes e peludas:
porquanto manejam habilmente os bisturis
que são astros cintilantes na podridão das vísceras.

Foto de Paulo Burnay

Elogio da loucura

Ao meu tio José (1940 – 1999)

O meu tio José, o louco. vejo-o
deambulando pelas ruas ao deus dará
sem outro destino que não seja deambular.

um Kentucky ao canto dos lábios.
o chapéu amarrotado…

o tio José, alto e elegante
como muitos dos homens da beira alta.
os olhos tão azuis… tão azuis…
quase germânicos.
lá dentro, o céu. não o céu de deus,
pois um louco não precisa de céu,
nem de deus, pois um louco não precisa
redimir os seus pecados.

mora na noite da luz. isento.
como as aves.

 Ressurreição

Luís Guerra e Paz

Depois do dilúvio
por entre as barcas e as casas submersas
onde agora o hálito de Deus mora
com a perna amputada às costas
regressou da morte

pois dizem que Deus não gostou do seu cheiro.

♦♦♦

Luís Costa escreve poesia e mais algumas coisas. Nasceu na sexta-feira santa de 1964. Tem alguns dos seus trabalhos publicados em revistas digitais como a Triplov e a Zunái, tendo também colaborado no primeiro número da revista internacional de surrealismo Debout Sur L’oeuf. Para além disso, pouco há a dizer. Ah, diz que a biografia do poeta é a sua poesia, pois, a seu ver, fora do poema o poeta não existe. Escrever poesia é para ele uma questão de ira e amor: uma violência amorosa. E também o contínuo suicídio do eu para que a obra se faça.

ODE FASHION – por Paulo Soares

Há novos desvarios no desalinhado armário da alma do poeta! Na peregrinação inócua de um centro comercial impróprio para consumo, calçou nos pés da mente um par de botas. Sapatos de essência negra, que em passos largos o levarão em sonhos aos caminhos da velhice. Sim, em sonhos e apenas neles! Na realidade, os bolsos que enfiou nas últimas calças, adquiridas na feira da balbúrdia, continuam sem fundos…

Nesse sonho agitado arranca da cama o espírito sisudo e agarra com força uma janela. Pelo vidro escancarado avista os jardins da noite e ouve. Escuta no breu os muitos meninos que ali brincam e espreitam. No queixume breve contam mimos ao escriba/sussurram-lhe ao ouvido beijos quentes trocados na copa das árvores, essas sequóias impenetráveis que já ali não estão, que alguém arrancou num ápice…

Em histeria pela ausência dessas sombras que lhe mentiam e o amedrontavam o poeta canta, salta e gesticula em gritos lancinantes e irreflectidos. Há sem dúvida novíssimos desvarios nesse singular Armário Fashion! Ode inesquecível a um roupeiro ultramoderno no qual se desarrumam em desordem camisas brancas de bolinhas pretas, camisas pretas de bolinhas brancas, casacos de fazenda azulada e cinza, camisolas grossas de uma gola alta impenetrável e muitos pares de botas. Sapatos negros e caros, de um plástico refinado que o fazem sentir mais jovem e cada vez mais belo, afastando-o irreversivelmente dos olhares rugosos e implacáveis da velhice…

Foto de Luís Guerra e Paz

♦♦♦

Paulo Soares nasceu em 1970, em Moçambique, na antiga Lourenço Marques, atual Maputo. “Escriba” desde que se conhece, é formado em jornalismo pela Escola Superior de Jornalismo do Porto. Exerceu funções como jornalista durante dez anos, no Jornal “O Primeiro de Janeiro”, colaborando em suplementos como “Artes e Letras”, publicação dedicada à cultura.

Participou com alguns textos poéticos nas páginas da Revista “Palavra em Mutação”. Escreve textos em prosa poética, não esquecendo o universo da literatura infantil. Tem alguns textos dedicados aos mais pequenos, realizando também workshops de jornalismo pensados para esta faixa etária.

ESPELHOS de Fellipe Lee

“A Reprodução Proibida” ou “O Retrato de Edward James” – 1937, de René Magritte
Ao piano




ela pôs o vestido vermelho, enquanto
ele finge não ver.

vê o jornal, as notícias, as mesmas.

ela tenta sentir a nota musical, 
que teme tocar
pela janela alguém os vê ausentes, 
iriam sair para uma longa janta, 
mas estão ali, 
sem se olhar.

a luz acesa ainda, 
não desligaram.

para deixar a casa, 
a noite gelada lá fora os espera, 
mas eles ficam imóveis, na casa.

ela senta ao piano, 
mas a nota não ecoa.

nada pode atrapalhar 
o silêncio que reina 
entre dois ausentes.

Continuar a ler “ESPELHOS de Fellipe Lee”

“CARTA ABERTA” A UMA DEUSA-RAINHA – por Joaquim Fernandes

Fui Teu pajem, aos 10 anos, ajaezado a rigor na ingénua atmosfera barroca e amorável de uma modesta capela desta “cidade da Virgem”. Lembro a Tua figura em carne viva num cortejo joanino evocativo da coroação, em 1646, como Rainha deste país. Quis o destino (e a madre-superiora da escola) que uma outra Conceição de louras tranças Te revivesse em corpo grácil: só a mais bonita da escola, namorada primeira, haveria de incorporar a mais radiosa divindade do Panteão celeste… Continuar a ler ““CARTA ABERTA” A UMA DEUSA-RAINHA – por Joaquim Fernandes”

POEMAS de Júlia Moura

Foto de Paulo Burnay

CORPO DO AMOR

falar de amor é a tentativa de decifrar
o escuro divino com a intuição do âmago
esbarrar no vazio tropeçar no tudo e
inventar meio mundo dando voltas
nas estrelas caídas
mais fácil é falar do teu corpo
do teu copo
do teu sopro de natureza cálida

Continuar a ler “POEMAS de Júlia Moura”

A POESIA de Ulisses Varsovia

Fémina y sino

Su nombre pétalos rotos

que ni la voz ni la tinta,

del tiempo, como mis días,

y también sus pasos,

como si luz ofuscada

o sobresaltados sueños.

 

Ella el amor sus racimos

lo torrencial desgranado,

caótica incandescencia

como si cruel orfandad o islas,

unísono el grito al noches dormidas,

vástago de cómo lo solo y lo llanto.

 

Calles pálido cortejo,

desgarradora asunción muertos metales,

y cada a lo largo y ceniza,

y a las horas de una y viniendo.

 

De allí ella abasalena:

sobresaltados sueños

toda dimensión paralela asomados,

y sin vestigio crónico de uso

o malheridas ropas que testimonios,

sino que direcciones piélagos,

ubicua y ácrona y dormida.

 

Ella pues fémina y sino,

fruto tal vez eslabón amargo

en la implacable noche ejercida,

o exabrupto súbito deseo ciego

cuyo luego errante insubsistencia.

 

A mí entonces abasalena

cuando calles estepa y ceniza,

y prorrupciones lo nuestro de siglos,

y descenso al nada y elixir

donde adormideras nirvana y beleño.

 

Después su nombre exhaustos fonemas,

y su voz como cayendo al sueño,

y su cuerpo lentas defunciones,

hasta que pálido eco roído,

hasta que fugitivas sombras.

 

Ahora otra vez de allí aromas

y vorágine y sed y trama.

Fémina efímeras huellas,

subrepticia impronta empero,

de modo que lira en trance,

ensimismado aeda hurgando.
Pero su nombre navíos en la niebla.

 

in “Abasalena”

♦♦♦

Afrodita

Así caídos tus párpados,

así clausurada a la luz

tu fría vida sin vida,

desnuda entre las estatuas,

 

en vano mis tibios dedos

deslizando por tu piel

su arrobo de escultor ebrio

en el tránsito de las formas.

 

En vano mi boca hambrienta

sobre tus marmóreos senos,

en vano mi loco deseo

su fuego en torno al fuego yerto.

 

En un único movimiento

paralizada, en el acto

de desatar tu desnudez

sobre el tálamo silvestre,

 

caerías a la hojarasca,

y crepitarían las hojas secas,

muda, si no suspendido

del cincel tu cuerpo ebúrneo.

 

Así suspensa entre la rigidez

y el deseo, entre el fuego

y el frío eje curvado,

en tu cuerpo yerto la lucha

de dos enemigas fuerzas.

 

Y así tus párpados caídos,

así clausurada a la luz,

tu vida ninguna vida,

y ningún arrobo el deseo

de mis dedos infructuosos

por tu cuerpo deslizándose.

in “ Megalítica”, 1999)

          ♦♦♦

Clarividencia

 

Clarividencia cristal,

cristalina clarividencia

la poesía

envuelta en túnica talar,

huidiza en cadencias

de fugaz melodía.

 

Lámpara luminosidad,

lámpara luz esplendente

encendida

de misterio oracular,

fluyendo a torrentes

y apenas asida.

 

Toda su virtud llamear

de desnuda claridad

ofrecida,

y su vuelo parpadear

con alas celeridad

sólo sentidas.

 

Ráfaga luz incendiaria,

ráfaga lumbre de astros

adormecida

en el espejo del agua,

roto si la sed sus labios,

o apenas decirla.

 

Clarividencia cristal,

diáfano río sonando

la poesía,

y su veloz parpadear

en tu ansiedad un resabio

de melancolía.

 

in“Racimos“, (1998)

(Inédito)

       ♦♦♦

Cuando vuelva a casa

Cuando vuelva a casa

Madre me abrirá la puerta,

 y quedará frente a mí

como una estatua viviente.

 

¿Qué le diré a Madre

cuando vuelva a casa

y me abra la puerta?

 

Y me besará la frente,

y me apretará las manos,

y me mirará en los ojos

con sus ojos de niebla.

 

Y tocará mis mejillas,

y girará en torno a mí

palpando mis ropas,

sacudiendo el polvo.

 

Madre me abrirá la puerta,

y en sus labios muertos

todas las lenguas terrestres

se agolparán, gritando.

 

¿Pero qué le dire a Madre

cuando vuelva a casa

y me abra la puerta?

 

in “Indumentaria”, (1998)

(inédito)

♦♦♦

Desde la noche

De la noche hasta mi corazón

llegan náufragos difuntos,

viajeros que vi partir

desde mis horas vacías

y cuyo rumbo guiaron

sucesos conmovedores.

 

Regresan mustios y heridos,

llorando de otoño espeso,

escrita en sangre y derrota

la bitácora marchita.

 

No me llaméis vuestro padre

ni vuestra antigua morada,

aquél que rezó y bendijo

vuestra partida está enfermo,

no pidáis paternidad

para el luto a mi bandera.

 

Yo sé que de noche existo

como un puerto de naufragios

que el soplo de las tormentas

abastece de despojos,

y sólo desamparados viajes

regresan pidiendo amparo.

 

Remece mi corazón

el llanto de lo que vuelve,

avergonzados viajeros

piden perdón a mi puerta,

días que vi morir

se levantan desde el tiempo.

 

Noche de estrellas azules

cayendo contra el mundo,

nada conjura el acoso

de su color homicida,

besa mi boca el verdugo

embajador de su origen.

 

Acaso la vi partir

y mis viajes la buscaron;

la vi zarpar y mis naves

se hicieron hacia su ruta;

la vi fallecer en mí,

y en mí quise encontrarla.

 

Acaso tal vez mis náufragos

hallaron su sepultura

navegando en mi interior

que en la noche reencuentro.

Acaso tal vez yo soy

el único que no ha vuelto.

In “Aguas tumultuosas”, (1976)

Ulisses Varsóvia  Naci en 1949 en Valparaiso, Chile, soy docente universitario, me doctore en Alemania, he publicado unos 25 poemarios, y me publican numerosas revistas de internet, actualmente resido en Suiza, sigo escribiendo poesia.